quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Terra



Olhava a terra se movendo sob seus pés. O chão parecia seco, mas no movimento surgia a umidade. Folhas, sujeira, pedras, pedaços de pão. Não gostava de pureza, terra presa em vaso. 

Seu entre-dedos sorria de cócegas e mexia cada vez mais, as unhas ficando pretas, os pés ganhando cor. A sensação era de muitas coisas em uma só. Uma vida secreta escondida debaixo de uma toalha. Sobre a mesa, um piquenique. Ao redor, crianças perseguindo galinhas e seus filhotes. 

Apenas um parque – árvores, gentes e bichos. 

Via raízes invadindo o concreto e se espalhando pelo mundo. Imagem comum, sedutora demais para mentes cansadas. 

Respirava, diferente – deixar-se ser. A realidade era uma grande caixa cinza após longos caminhos cinzas. Uma vida de pó. 

Gostava de observar os animais. Sabia que a natureza não é cintilante. Via com certa dor a crueza da vida. 

Mas era vida. 

Buscava o mesmo em sua humanidade – uma leitura clara. 

Gostava de olhar: a natureza não estava lá e ela estava, cansada. 

Decidia. Fincar os pés, não mais apenas provocar. 

Seria alguém que também é terra.






quarta-feira, 14 de outubro de 2015

458 pedras




Sara carregava as pedras. Ela talvez fosse forte porque, apesar de não ficar em pé, ficava ali, resistente. Não que servisse para muito, pedras são sinuosas. Ficavam todas em Sara, mas continuavam por aí, no mundo. O dobro de dor numa dor só.

Ela pedia mais, queria mais e buscava mais. Quando não achava, sentia um vazio pior que qualquer toda dor do mundo. Um buraco e ela não sabia viver sem preencher os seus. 

Vivia carregando 458 pedras, das que vieram depois, perdeu as contas. Ia se arrastando, esforçando-se para as pernas não quebrarem, para as pedras não caírem, para manter a cabeça erguida à procura. 

Os passos estavam ali, mas quem olhasse veria falta de movimento. Se olhassem para sempre, veriam passos milenares. Curtos, com pés que quase não se levantam. 

Adorava pedras. Para outros, pareceriam todas iguais; para Sara, cada uma era singular e todas igualmente belas. Muitas pedras. Desamor. Era quase um vício, como os outros. Buscava o sofrimento, mas não suportava senti-lo, então, as substâncias. 

Andava exibindo seu casaco de dor, pior que qualquer casaco de pele porque eram todos juntos. Um dia, seus pés se desmancharam e ela andou de joelhos. Mas seus joelhos também não podiam suportar e viraram pó. As pedras caíram e começaram a seguir na direção de quem estivesse por ali. Primeiro, os que mais amava, depois os que cruzavam o caminho. 

Sara, coletora de pedras, não poderia deixar as suas em outros. Esse pensamento a fazia se desmanchar mais, por isso, precisou olhar em outra direção. Alguns aceitaram porque a amavam e o amor ainda existe. 

Procurou ajuda. Muitas erradas e por tanto tempo. Encontrou três certas que disseram a mesma coisa. Ela não podia carregar todas as pedras do mundo. Podia carregar talvez as suas e apenas as solúveis. As outras, deveria deixar ir. 

Não queria, mas as pedras escapavam de suas mãos transparentes, caindo sobre as costas de quem não as tinha pedido, mas as aceitava. 

Enfim ela parou e lentamente reconstruiu joelhos, não como passos, não milênios, talvez séculos. Depois, foi a vez dos pés renasceram frágeis e pequenos para um corpo humano. Fizeram com que Sara se sentisse forte – tinha muito mais do que estava acostumada a conhecer. Até sorria e começou a recuperar pedras que havia perdido, o que era justo. Seus pés doeram. Estavam acostumados à dor. 

Vendo que ainda andava, voltou ávida ao vício de coletar pedras, que a receberam como quem encontra um grande amigo. Cambaleava, andava e era bom. 

Mas o cambalear ficou cada vez mais presente e os pés que nem tinham terminado de estar inteiros já começavam a se desfazer. Mais uma vez.

E Sara ouviu das três ajudas a mesma coisa. Ela não podia carregar todas as pedras do mundo. Podia carregar talvez as suas e apenas as solúveis. As outras, deveria deixar ir. 

Ouviu das três ajudas muitas vezes a mesma coisa. Ouviu o mesmo de uma baiana, de uma criança e de um cigano. E ouviu das pessoas que a amavam. Foram palavras duras em seu desespero que as pedras deixassem seu peso. Ela ouviu sempre, olhando as pedras, olhando os mundos, olhando as pessoas, em seu êxtase de sacrifício. O mundo não ajudava, sempre cheio de mesquinhezes e grandezas das mais assustadoras que Sara tomava para si, mesmo que estivessem do outro lado, mesmo que ela fosse uma só e bem pequena. 

O dilema.

Porque, como disseram, rir estava em sua essência, mas ela também não podia desperdiçar a dor. Não nesse mundo. 

Então ela fechou os olhos, ouviu de novo e encontrou verdades que não sabiam o que fazer. 

Por isso, escreveu este texto. 

E colocou as pedras aqui.

Para conhecer meus livros, acesse www.mahanacassiavillani.com.br

sábado, 3 de outubro de 2015

Fazes-me falta, alguma vez te disse?


Inês Pedrosa, que que é essa mulher? Gente do céu. Dá vontade de só colocar um monte de citação pra todo mundo chorar das coisas lindas que ela escreve.

A Inês Pedrosa é um escritora portuguesa contemporânea. No site dela, diz que ela ganhou o Prémio Paridade da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género - nem sei o que é, mas pelo nome já gostei.

Por enquanto só li dois livros e um conto, mas rapidinho essa escritora fantástica entrou na lista dos preferidos. Lendo resumos ou contracapas dos livros, eu ficaria com preguiça. Tenho preconceito com histórinhas de amor (não consigo nem evitar o diminutivo pegajoso)... O problema é que muito romance, tanto em livros quanto no cinema, é machista e totalmente escroto, então acaba ficando difícil não confundir a representação (mal-feita) com a coisa em si.

A Inês Pedrosa fala muito de amor e de uma forma tão bonita que dói. Mas ela não fala só disso - nos livros dela tem injustiça social, preconceito e várias merdas desse nosso mundo. Tenho a impressão de que os problemas das personagens vão muito além de problemas pessoais, sendo quase que um "tratado filosófico" bem entre aspas, mas enfim...

Fazes-me Falta é a história do diálogo de uma mulher jovem que morre inesperadamente e de seu amigo mais velho que fica. É sobre perder oportunidades, não conseguir se conectar e nem mesmo se comunicar. 

Não dá. É impossível descrever. Vou colocar as citações. As muitas citações. 




Descansa em paz. Fizeste uma morta bonita - mais bonita e serena do que alguma vez foste, cachopa. Compuseram-te a imagem. Disso vivem as figuras públicas, mesmo na morte. Viva a imagem. Talvez fosse melhor não te ter visto, não ter beijado a tua testa. Agarrei-me a essa derradeira nota do teu calor. Ficaste-me com um travo a incenso e flores mortas. O cheiro do amor vedado que abandonáramos pela paisagem da nossa pré-história. Chamo-lhe amor para simplificar. Há palavras assim, que se dizem como calmantes. Palavras usadas em série para nos impedir de pensar. 


O que existia, existe, entre nós, é uma ciência do desaparecimento. Comecei a desaparecer no dia em que os meus olhos se afundaram nos teus. Agora que teus olhos se fecharam sei que não voltarás a devolver-me os meus


Fazes-me falta. Mas a vida não é mais do que essa sucessão de faltas que nos animam.


E se o céu for o desencanto em que crês? E se a nossa amizade mal vivida não couber na perfeição do céu? Deixa-me ser apenas a beleza magoada da tua vida, enquanto a vida for tua


Os meus passos não criam eco, a minha voz não tem sombra. É a ti que vejo porque não consigo deixar de te pensar. Queria desvendar o Grande Mistério: como vive ele, longe de mim?


(...) eu queria agora dar-te o amor total e infantil que tinha para te dar. Racionei-o a vida inteira como a porra do chocolate de leite _ por que vivemos como se o tempo nos pertencesse infinitamente, como se pudéssemos repetir tudo de novo, como se pudéssemos alguma coisa?


Organizei minha existência por iluminações. Desta forma, todo o amor e todas as vitórias me eram permitidas: já estava morto. Estrangulava as paixões no berço, o que tem a vantagem de as tornar estéreis.



Demasiado tarde. São estas as palavras mais tristes de qualquer língua.

Tu não estás só - não me sentes, real amiga imaginária? Distribui a dor que te deixei pelos famintos de dor, meu querido, pelos que não experimentaram ainda a mobilização do sofrimento. Faz-me existir nesse trabalho de conferir beleza aos dias póstumos. Havia uma criança abandonada chorando por detrás da porta, no centro da nossa cidade. Havia uma criança que acabou por morrer de fome, arranhando a porta, sem que os vizinhos, ouvindo esse choro incessante, se movessem. E se nessa criança habitasse o segredo derradeito da teoria quântica? Há tão poucas pessoas cujo talento possa salvar-nos - e nem sequer sabemos descobri-las e salvá-las. Consolamo-nos na beleza imediata das coincidências, escapa-nos a beleza catastrófica dos acasos.


- Sei que é um momento difícil , mas disseram-me que era um dos seus melhores amigos.
Confirmaste: é por isso mesmo que não falo dela. Continuarei apenas a falar com ela.


Como é que, de um dia para o outro, a sua voz deixou de me procurar e eu deixei que a minha vida dispensasse o espelho da tua?


Deus é misericordioso; põe-me diante de ti, em vez de me despachar a alma para um desses países onde as mães mutilam as próprias filhas, cortando-lhes o próprio sexo à faca e cosendo-as com espinhos. Ouço continuamente o grito dessas meninas _ acordei com eles a vida inteira. Abria os olhos escutando concretamente esses gritos vindos da Somália ou do Sudão, esses gritos que podiam ser meus.


Quero por o livro inteiro aqui.


quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Minas na Literatura




Virginia Woolf

Então, né? Não existe mais machismo. Feminazi é tudo doida, vitimista, mimimi.  Pois é, eu quero ser escritora. Ou sou, não sei bem como funciona isso. Fiz letras e tenho quase pós – não fiz a monografia, mas cursei todas as matérias.

J.K. Rowling
Um dia pedi indicações de literatura contemporânea para um professor. Ele mencionou vários escritores, mas, grande surpresa, nenhuma escritora. Perguntei se ele não tinha nenhuma escritora para indicar, mas ele não conseguiu se lembrar de nenhuma. Fiquei meio puta, achei meio absurdo.

É muito absurdo.

Numa universidade, falando com especialistas e nada.

Clarice Lispector
Em uma pesquisa feita por Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB), constatou-se que cerca de 93,9% dos escritores são brancos, 72,7% são homens, 47,3% moram no Rio e 21,2% moram em São Paulo.

Desses dados surgem duas possibilidades.

Primeira. Homens brancos residentes no eixo Rio-São Paulo são melhores e têm mais inclinação para a literatura que os demais brasileiros.

Segunda: preconceito. Talvez os não-homens-brancos-Rio-São-Paulo não tenham as mesmas oportunidades.

O que será? Hmmm...


Maya Angelou
Eu sempre tento ler obras escritas por mulheres, negros, LGBTs, mas, mesmo assim, entre meus livros a maioria é de autoria dos ditos cujos: homens brancos Rio-São Paulo. Se alguém te pedisse pra listar cinco escritores contemporâneos – contemporâneos mesmo, que estão publicando agora – quantos deles seriam mulheres? Negros? Trans?

Tá feia a coisa... Passou da hora de todo mundo ter voz, representatividade, protagonismo e tudo a quem tem direito. Imagina que delícia ler o mundo sob outras perspectivas?

Quem sabe as coisas mudam um pouquinho... já passou da hora.




segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Os Ricos Também Morrem



Acho que estou ficando velha. Sabe aquelas pessoas que dizem: Meu Deus, onde esse mundo foi parar? Tô dessas. É tanta coisa errada acontecendo ao mesmo tempo que a gente acaba se alienando ou enlouquecendo. 

É tanta tragédia junta, é tanta gente sofrendo. O mundo tá com overdose de desgraça e muita gente não liga e quem liga quase sempre tá perdido. Não sabe muito bem o que fazer. Sou dessas também.

Por tudo isso, quando fui ler Os Ricos Também Morrem, do Ferréz, preconceituosamente esperava mais um conjunto de tristezas no papel. Apesar da vontade de ler e conhecer, tinha essa mentalidade, achei que seria apenas mais uma dose, fraca demais pra fazer efeito, de tudo aquilo que já vejo todos os dias nos jornais, nas ruas, nas pessoas. 

Estava errada, ainda bem.

Pra quem não sabe, Ferréz é um expoente da chamada literatura marginal. À margem, fora do centro. Um bom exemplo desse tipo de literatura é a obra de Paulo Lins, Cidade de Deus, que virou filme e fez muito sucesso. Ferréz cresceu e vive até hoje em Capão Redondo, São Paulo, local que possui todos os problemas bem conhecidos das periferias. 

Heloísa Buarque de Holanda, em um texto sobre literatura marginal, que pode ser encontrado aqui, diz o seguinte:  

O que surpreende nos livros de Ferréz é, sobretudo, a inversão do lugar da violência. Em vez de ser tema da narrativa, a violência é apenas o entorno, a condição de vida de personagens comuns que, como nós, têm emoções, prezam a família, amam, têm ciúmes, fazem sexo e sonham com um futuro mais tranqüilo. Isso é um choque para o leitor que não vive nos cenários do crime e termina promovendo uma forma de identificação ou, pelo menos, entendimento, do personagem agressor, ainda não conhecida na nossa literatura. 

Os Ricos Também Morrem é um livro de contos impressionantes que rehumanizam pessoas que a gente teima em desumanizar. 

Prato Feito, que fala sobre a relação patrão-empregado e toda essa história da exploração, é genial e descreve uma revolta que apesar de muito particular, é de quase todos.

Pensamentos de um "Correria" me lembrou muito um certo causo com o Luciano Huck ;)

Reportagem foi o que mais gostei. Doeu ler e me reconhecer e reconhecer o mundo nesse conto:

E desde quando você parou?
Foi há alguns anos, acho que uns 4.
Alguém da sua família passou por isso antes?
Não que eu me lembre.
E foi aos poucos ou você deixou de uma vez?
Deixei de uma vez, logo que entrei, foi uma manhã, me lembro como se fosse hoje.
Foi com coisas pequenas, primeiro, ou é tudo a mesma coisa.
É a mesma, mas em algumas situações eu me surpreendo.
E as pessoas duvidam?
Quase sempre, mas eu não ligo.
Você não expressa nada mesmo?
Nada, em nenhum lugar.
Como é seu dia a dia?
Acordo, vou pra academia, depois me levam para lá, onde tudo começou.
E como é sua rotina lá?
Ando, converso, tomo capuccino, mas principalmente faço muitas reuniões.
E lá também você passa por isso?
Sim.
E onde mais?
Na rua, em casa, em qualquer lugar que vou.
No serviço as pessoas são assim, tem esse mal também?
Acho que sim, esses dias a mulher que faz o café caiu e torceu a perna, e todos passaram sem fazer nada.
Você fez?
Eu não.
E pensou algo?
Não.
Nem por um segundo?
Bom, pensei que tinha 2 minutos para procurar outro café.
Sua família, como reage?
Eles estranham, perdi uma festa de aniversário do meu filho, aí deu problema.
E o que você sentiu?
Nada.
Nem no caso da família?
Nada.


Morri.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Mulheres que Amam Demais e os Relacionamentos Abusivos




Nunca gostei de autoajuda. Os livros são simplistas, reducionistas, vários outros istas e servem para emburrecer. Geralmente, só os títulos me deixam com nojo, raiva ou preguiça. Para mim, eles são, de forma geral, uma maneira muito baixa de extrair dinheiro do sofrimento alheio. Os voltados para mulheres costumam ser cheios de machismo. Basicamente ensinam como ser magra e casar. Pq, né? Está no nosso DNA. O Tico quer que a gente case. O Teco quer que a gente seja magra.

Minha lista de coisas que funcionam melhor que autoajuda incluem terapia (óbvio), literatura, filmes, música, álcool, vídeos de gatos e chorar no banheiro. Até isso. E nada. Muitas vezes nada é infinitamente melhor que autoajuda.

Mas livros de autoajuda vendem muito. Muito, muito, muito. Não é um indicativo de qualidade, mostra apenas que tá todo mundo fudido e procurando uma solução mágica.


Quando acontece algo muito doloroso emocionalmente e dizemos a nós mesmos que falhamos, estamos na verdade dizendo que temos controle sobre isso: se nos modificarmos, o sofrimento cessará... Culpando-nos, prendemo-nos à esperança de que seremos capazes de descobrir onde está o erro e corrigi-lo, controlando, dessa forma, a situação e fazendo o sofrimento cessar.


Uma vez me disseram que quando temos uma dor muito grande, fazemos qualquer coisa, qualquer coisa mesmo para que ela vá embora. Deve ser verdade. Eu mesma já gastei muito e já fiz muita bobagem na minha tentativa de diminuir meu desespero. 

Minha grande dor era, e continua sendo, a depressão e todas as suas causas. A maioria delas não funcionou, algumas coisas chegaram até a atrapalhar, mas, por enfim ter encontrado ajuda, valeu a pena.

Uma dessas coisas que fiz foi ler livros de autoajuda. Mesmo achando que eles não serviam para nada, ou pior, que faziam um desserviço, mesmo me achando ridícula. Li.

A maioria foi tudo aquilo que eu pensava mesmo e me frustrou bastante. Um deles foi diferente e serviu, pelo menos para mim.

Nas livrarias, Mulheres que Amam Demais, da Robin Norwood, aparece classificado como psicologia e/ou autoajuda. Talvez seja um pouco dos dois.

Devorei tudo em dois dias e, no meu desespero, grifei 70% das frases. Me identifiquei com muitas informações ali. Percebi comportamentos similares em pessoas a meu redor.

Tenho muitas críticas ao livro. A heteronormatividade e o machismo que encontrei algumas vezes incomodaram bastante, mas, de forma geral, ele ajudou mais do que atrapalhou.

Ao redor do mundo foram criados grupos de apoio para essa condição chamada amar demais. É um nome horrível. Não tem nada de nada a ver com amor, tem a ver com abuso e autosabotagem. A autora se concentra em relacionamentos homem-mulher (heteronormatividade), mas dá pra transpor as ideias para diversos cenários.

O título é bastante sensacionalista, mas o livro em si não é assim.

Ele basicamente fala sobre pessoas que buscam relacionamentos destrutivos, reproduzindo situações também destrutivas na tentativa de corrigi-las, de consertar o passado. Quem não conhece essa história?

Agora que não estou mais tão vulnerável e que estou tentando dizer um grande foda-se para todas as coisas ruins do meu passado, (antigo e recente), chega até a parecer meio bobo. Quando a gente entende, tudo fica meio óbvio e é inevitável o sentimento de: mano, qual era o meu problema? Mas, quando a gente tá afundada na merda, merda é tudo o que dá pra enxergar.

Foi difícil, mas agora posso quase rir de todas aquelas coisas. 

O grande problema é que relacionamentos abusivos são tão banais, tão comuns, que não só as pessoas os vivendo, mas aquelas à sua volta, enxergam tudo como normal. 

É fácil condenar um marido que espanca a mulher ou os filhos. É fácil identificar o erro. É fácil condenar a mulher que não tem coragem de denunciar, que volta para os braços do abusador. Difícil mesmo é sair de uma situação em que acreditamos merecer estar. Mesmo que inconscientemente. 

Difícil é perceber os relacionamentos abusivos na sutileza. Dica: não é nada sutil, é que a gente vive numa sociedade tão perturbada e fica tão dependente que começa a achar tudo normal.

Quando nossas experiências na infância são bastante dolorosas, somos frequentemente compelidos a recriar situações parecidas em nossa vida, com o intuito de conseguirmos domínio sobre elas

O número de pessoas que vive ou já viveu esse tipo de situação é absurdamente alto. É um problema grave e parece que ninguém liga muito. Por isso, tudo o que ajudar a sair disso, tá valendo. Mesmo que seja autoajuda.


O livro fez tanto sucesso que foram criados vários grupos de apoio, nos quais mulheres podem compartilhar experiências e entender que não estão sozinhas. O endereço para o grupo de São Paulo é: 


Para conhecer meus livros, acesso www.mahanacassiavillani.com.br




domingo, 9 de agosto de 2015

Danaus plexippus




Lembrava-se da picada que ficou vermelha rapidamente e foi crescendo até chegar a um roxo claro, mas não lilás, em relevo. Texturas e cores. Vira com certa inveja o bicho sendo expelido, se contorcendo como festa. Achava lindo saber tanto. Data e hora da invasão. Marca, história, cicatriz.

A ferida estava quase se fechando para sempre. O invasor tinha que sair, e a preocupava. Não era berne, mas talvez tivesse a pureza da minhoca espremida pelo avô do pé da irmã. Uma memória cheia de nojo e afeto.

A irmã não se lembrava do acontecimento, mas ela nunca esqueceria porque aquela era a raiz de tanta diferença entre as duas. Ela, presa no quarto. A irmã, jogada no mundo, toda voltada pra lá e ela toda voltada pra cá. 

Por que sempre procuramos os extremos? A irmã cada vez mais fora e ela parando sem nunca perceber. Quando viu, já era tarde, estava imóvel em uma cama. Paralisada de tanto pensar, sem entender sua invasão, sem sabê-la. Lutando? contra um monstro que não sabia existir. 

Ninguém sabia o porquê de tanta tristeza. Sua vida era boa. Tinha amor, tinha dinheiro. Quer um chocolate, filhinha? Ela também não sabia. A inveja da irmã não era real. Não queria saber seu invasor nem suas cores. Achava que se soubesse teria que o expelir e então ficaria só. Por isso não se mexia, para que nada novo acontecesse e ela não tivesse que enxergar. 

Foi assim que aprendeu. Uma traição fazer diferente. E a solidão. Ela, sempre só, com medo de ficar sozinha. Sem saber que invasores nunca acompanham, só invadem. Roubam a vida que se deixa passar. 

E a irmã pra fora, se mexendo e ela pra dentro, quase sem sair. Livros nunca foram o bastante, mas um dia deixaram mesmo de ser. E então a doença. Depois de espiar pelo buraco da fechadura, o não. Foi assim que tudo começou quando parecia ser uma pausa. E o ficar imóvel era na verdade um se mover. Abrir os olhos apenas. Tão difícil, cerrados, sem cílios em pálpebras amarelas de conjuntivite. 

E quando ela os abriu, viu o escuro de suas mãos comprimindo, tentando cobrir. E já foi uma noite diferente. E ela continuou sem saber se queria, se escolhia ou se podia ser. 

Quanto mais imóvel mais se mexia. O sofrimento dos opostos. Sem equilíbrio. Sem comunhão. E ela morreu. Lenta e dolorosa, mas não como se imagina. Não foi cheio de lágrimas e romance. A morte foi feita de gritos, palavrões e mau cheiro. De soluços, catarro e humilhação. Ela não chorou, ela gritou e esperneou como um porco no abate. E ela morreu e foi cercada por terra escura e fria. O silêncio.

E no silêncio ela pôde ouvir. E no frio ela pôde queimar. E no escuro ela pôde ser luz. E então descobriu que era seu próprio invasor, se despiu de suas roupas de humano e de borboleta à larva, foi. 

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domingo, 2 de agosto de 2015

Meu herói



Ele é um menino assustado, nunca foi bom no futebol. Não o suficiente. Teve família, teve comida, teve amor, estudou, vai na igreja, tudo certo. Não tem o que disseram. 

Imagina quando vai ser o que devia, dirigir carros velozes, matar o bandido, salvar a mocinha, como nos filmes. Ele é o herói.

Queria arma, só pra se proteger. Não vai atirar, tem medo, só pra se defender. Bandido bom é bandido morto. Não pode deixar estuprador solto, assassino solto. Pena de morte, arma pro cidadão, não pro bandido. Ele não é mau, ele é o herói.

Fez tudo certo. Estudou. Trabalhou cedo, 20 anos, é justo ter carro. Vem vagabundo querendo roubar. Não tem nada contra negros, tem amigos, colegas de trabalho que são. Não é justo as cotas, ele estudou, se esforçou e o outro nem sabe ler e rouba vaga na faculdade. Viu a notícia do catador de papelão que passou no concurso. Ele não é preconceituoso, a escravidão já acabou faz tempo, ele não escravizou ninguém. Fez tudo certo e agora tem um emprego mais ou menos e o preto que entrou depois já ganha mais que ele. Não pode, ele é o herói. Estudou, se esforçou, entrou primeiro. 

Ele faz tudo certo, respeita mulher, abre a porta do carro, não tem coragem de chegar. Quer casar, na igreja, tudo certo. Ele não é mau, ele é o herói. E vêm as feministas dizendo que tá errado. Ele é contra estuprador, bandido bom, bandido morto, mas a mocinha fica com o bandido, não com ele que é o herói. Todas putas, menos pra ele.

Ele vai na igreja, quer casar. Casamento entre homem e mulher, tá na bíblia. Ele não leu. Aí vem os gays, se abraçando, se beijando, na rua. Casal, casados, não pode. Ele é o herói e os gays com o amor que era pra ser dele. Tá errado. Viu que eles querem legalizar a pedofilia, não pode. Ele é o herói, vai salvar as criancinhas.

Ele é o herói. Acreditou na mãe, acreditou no padre, acreditou no filme. Ele tá certo. Por que sua vida não dá certo? Não é como disseram. Ele tá certo. É o mundo. O mundo tá errado. São os negros vitimistas querendo roubar o lugar dele que estudou, se esforçou, fez tudo certo. São as feministas que fazem mulher não gostar mais de homem. São os gays roubando o amor que era pra ser dele. Ele é o herói, vai consertar, bandido bom, bandido morto. 

Feliciano, Bolsonaro, de Carvalho. Eles tão certos. Falam certo. Têm seguidores, fazem sucesso. Ele vai copiar, São Paulo tem que separar. Ditadura, não gayzista. Feminazi não quer dar. Não pra ele. Lésbica peluda, tá errado, no filme pode. Negro vitimista, rouba o lugar. Não vai deixar. 

Ele fez tudo certo, o carro é dele, a mulher é dele, a igreja é dele, o emprego é dele. Ele é o herói. Não vai deixar ninguém tirar o seu lugar.

Ele tem uma arma.

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domingo, 26 de julho de 2015

Pés




Quando eles estão cansados e doem é porque o resto já não se contrai tanto. Quanto maior o cansaço dos pés, menor o pulsar. Como se vê, é uma disputa, quanto mais um dói, mais o outro descansa. Os pés vencem quando deveriam perder, quanto mais descansados estão, mais o coração, tão usado do lado de fora, se encolhe do lado de dentro.

As câmaras estão cheias de músculos. Recebem e espalham sangue que chega até os pés, mas os pés estão tranquilos, o sangue chega fraco, manchado. Não é mais aquele que sai do coração e chega quase igual ao cérebro e ainda tremendo às mãos. Nos pés o sangue chega manchado de nada, como se fosse apenas um tecido líquido ali, transportando alguma coisa por algum motivo. 

Uma lista de reinvindicações? Mais dor, mais contração, mais força, mais medo, paralisia. O que é que os pés têm para pedir? Estão felizes lá longe sem ver o sangue, sem senti-lo. Apreendem apenas a sua sombra. Reivindicar... já têm tudo, o melhor, o sangue perdido de si. Enquanto isso, o coração chega ao cérebro, pelo sangue. Mais dor, mais força, mais medo, paralisia. Depois as mãos, tremendo sangue, pensando veias, inexistindo para os pés. 

É por isso que tanto se fala dele, é por isso que ele está em todo lugar, sem graça, ninguém mais querendo saber de tanto ver, tanto ter, tanto sentir. É um músculo, pedindo sempre mais, espalhando sua gosma em quem não a quer. E depois ninguém mais sabe qual a origem, coração, sangue, cérebro, mãos. De quem é a culpa? Acaso importa quando tudo é sujeira?

Como posso fazer parte de pés que me carregam sem perceber? Que me levam aonde não quero ir? Eles não me sabem, por isso não os sei, mesmo os enxergando lá longe, lá embaixo, tão leves, mesmo cansados, mesmo sem dor. 

As questões andam mais ao norte, no ar, sem se preocupar com pés que não se preocupam com elas. As questões estão no sangue? Foram elas que o sujaram ou são apenas mais um de seus componentes? É o sangue que causa o terremoto? Ou é o coração? E os pés nunca sentem nada, distantes, alheios, tão ignorantes quanto ignorados. 

O sangue continua. Vai tremendo, pulsando e fazendo pulsar. Volta cheio de angústias, com toda a sujeira misturando cérebro, mãos, pés e coração numa história que só se pode repetir porque não tem enredo e nunca vai terminar.

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quarta-feira, 15 de julho de 2015

Ninguém



Ninguém é a favor do estupro. Estuprador apanha na cadeia. Até bandido tem código de honra. Nem bandido faz esse tipo de coisa.

Ninguém é a favor do estupro. Mas muita gente até acha normal as atrizes mostrando os peitos na TV pra vender mais. Alguns dizem que é uma imoralidade, mas até esses assistem pornô. Que jogue a primeira pedra quem nunca assistiu. E jogam, mesmo já tendo assistido.

Ninguém é a favor do estupro. Mas muitos acham normal pressionar a namorada pra transar e pôr a mão aqui e ali depois de ela ter dito não.

Ninguém é a favor do estupro. Mas quase todos olham a mulher que passou de shortinhos, afinal, ela passou de shortinhos, mesmo que ela tenha apenas 14 anos.

Ninguém é a favor do estupro. Mas quem não adora ver o e-mail com nudes da ex-namorada de alguém tentando se vingar?

Ninguém é a favor. Mas muitos contratam a loira gostosa, mesmo que houvesse candidatos mais qualificados. Só pra olhar.

Ninguém é a favor. Mas todos estão acostumados a pensar que o corpo feminino existe para olhos, mãos e bocas dos outros.

Ninguém é a favor. Mas quantos praticam a autocrítica e procuram consertar o erro dentro de si?

Ninguém é. Mas muita gente acha feminista exagerada e mulher vitimista.

Ninguém é. Mas quantos acreditam que a cultura dele seja um mito inventado por petralhas, metralhas, comunas, feminazis ou qualquer coisa que se decida odiar?

Ninguém é.


Ninguém.

domingo, 12 de julho de 2015

Pai






O problema com os monstros é que eles têm olhos que podem chorar. E são lindos. Tão lindos pra quem não aprendeu a ver. Eu cresci cercada deles e aprendi que ser boa é fazer beleza naquilo que é feio. Eu via em tudo aquilo que os outros achavam triste e perigoso o que era certo e bom. Enxergando tudo torto, confundia ter olhos que podem chorar com poder chorar, com querer chorar, com saber chorar. Então aprendi a ver e a viver pensando apenas monstros, tentando achar jeitos de ver uma lágrima cair. 

E sempre houve muita água nessa história, mas ela era toda minha. E eu, boba, achava que tudo bem, porque podia ser espelho. Eu não entendia que os monstros enxergam muito bem uma realidade e sabem usá-la e sempre a usam, mas nunca, nunca a sentem. Eu não sabia que os monstros não podiam nem queriam ver dentro da dor. Mas eles sabem toda ela de fora, toda mesmo, todas as caras e todas as cores e as usam muito bem. Usam o fingir da dor para roubar folhas do livro da vida dos outros. Não podem roubar o livro todo, porque não o enxergam. Se enxergassem roubariam tudo, mas, na verdade, se enxergassem teriam olhos que sabem chorar e escreveriam seu próprio livro com as folhas que construiriam com os olhos que sabem chorar. 

Minhas folhas estão acabando porque eu sempre escrevi muito e desenhei. Desenhei monstros com olhos que podem chorar e acreditei, porque quis acreditar, que eram olhos que sabiam chorar. Cercada por monstros e achando que eles são lindos, mas tão lindos, eu até entreguei algumas folhas, muitas folhas e eles, vendo nas mãos o que não haviam precisado roubar, me olhavam bem fundo de espanto e eu via um brilho que sempre vi como saber chorar, mas não era, não era, era só um fundo de monstro num fundo de olhos que aprendem que existem presas fáceis e descobrem o prazer de roubar não roubando, de roubar como se nem quisessem, de roubar não só a folha do livro da vida dos outros, mas a própria tinta, a letra e o desenho. Ganhar páginas cheias de cor. 

Essa descoberta que eu dei aos monstros era uma felicidade. Eles sorriam tão grande e tão largo que eu, boba de novo, achava que toda aquela iluminação vinha de olhos que sabem chorar. Porque todo mundo sabe, só olhos que sabem chorar podem ter bocas que sabem sorrir. Mas eu era boba de novo e de novo porque não via que toda aquela iluminação vinha do livro da vida dos outros. E das minhas tintas e das minhas cores. Porque eram monstros com olhos que podem chorar, mas não sabem chorar. Roubam folhas pintadas de histórias. E sabem fingir a história que não é a deles. Sabem causar a dor que só sabem enxergar de fora, porque aqueles que têm olhos que sabem chorar doem mais e sofrem mais o mundo e os monstros sabem. Eles sempre sabem. 

Mas os monstros sabem muito. Muito mesmo e usam, usam muito mesmo. Mas não sabem saber o que importa. Não sabem que no sentir da dor pode haver beleza e alegria até e que ter folhas de um livro que é só seu é a coisa mais bonita do mundo. Melhor que roubar, melhor que ver a lágrima cair, melhor que esperar que os monstros que não querem saber chorar queiram saber chorar e usem o chorar e construam suas próprias folhas do livro da vida. 

Mas os monstros, ah, os monstros não querem ter olhos que sabem chorar porque têm medo. Têm medo de chorar, medo de construir suas folhas e mais medo ainda de dizerem que são monstros. Por isso fingem a dor dos outros, fingindo que acham que fingir é o mesmo que sentir. 

E foi assim que descobri o segredo, monstros são feitos todos de medo. O medo de si e o medo dos outros e é assim que eles continuam monstros. Sendo e fazendo medo. E descobrir o segredo me fez olhar mais fundo e querer dar ainda mais folhas com mais tintas, com mais cores só pra ver se eles decidem querer aprender a chorar. Mas não adianta, o que é mais triste nos monstros é que eles escolhem continuar monstros que roubam o livro da vida dos outros. Monstros com olhos que podem chorar não querem ter olhos que sabem chorar e fogem sempre do saber. Eles têm muito, mas muito medo da dor. Da sua própria dor e só dela. E preferem continuar fazendo medo e roubando o sentir de quem já sabe a dor e por isso não quer fazer dor nos outros. 

Sabendo assim do que os monstros são feitos, eles parecem pequeninhos, quase dando vontade de rir ao mesmo tempo em que dá vontade de chorar. Mas monstros são monstros. São feitos de medo e espalham medo. E é por isso que mesmo com vontade de rir e com vontade de chorar e achando tudo pequeninho e às vezes achando tudo muito grande eu, boba que sou, comecei a tentar parar de dar folhas do livro da vida. Mas ainda sim me vejo com a mão esticada falando bem alto, querendo que todos os olhos saibam chorar, aí percebo e me encolho num canto dizendo que não, que não pode, que não quero fazer nem ajudar a fazer medo. Mas os monstros já roubaram as folhas do meu livro da vida. Porque eu entreguei tanto e por tanto tempo que não aprendi a fechar nada e o livro está sempre aberto e as folhas voando, chamando quem quiser roubar.

domingo, 5 de julho de 2015

Quem tem cu...





Eu ouvi dizer que tem uma terapia de grupo. Terapia de grupo. Terapia já é coisa de viado. De grupo então. E só macho. Nada de mulher. Eu não vou ficar falando dos meus problemas prum bando de imbecil. Chorando porque minha mãe mimimi. Tive criação, sou homem, resolvo minhas coisas. Terapia de grupo. Sai fora. 

Terapia é coisa de viado. Terapeuta é tudo mulher, pode ver. Ou então, viado. Psicologia é curso de mulher. Numa sala de cem pessoas, tem três homens só. Quer dizer, não é homem-homem, porque se fosse não tava lá fazendo psicologia. Mas até aí tudo bem, quer ser bicha, vai ser bicha longe de mim. Agora, ficar participando de grupinho aí. Não tem cabimento. E depois vem contar na maior cara de pau. Não almoço mais com esse sujeito. Depois ele vem com papinho estranho, vem querendo dar tapinha nas costas. Sai pra lá. Se vou no banheiro e ele tá lá, nem disfarço, saio mesmo. Ou então finjo que vou cagar. E quero macho me olhando? Sai fora. 

Já alistou mais um pro grupinho de viado. Não quero essas coisas perto de mim. Sabe como eles chamam esse negócio? Vivência de afetividade. Que porra é essa? Veio me dizer que melhorou o casamento, que agora enxerga a mulher como ser humano e respeita e é capaz de corresponder às necessidades emocionais dela. Repito. Que porra é essa? Isso lá é jeito de homem falar? Sai fora. 

Agora tão os dois aí, almoçando juntos, tomando café juntos, até mijar devem mijar juntos. E você pode imaginar o que acontece naquele banheiro. Imagina! Não, eu não quero. Se cumprimentam com um abraço bem apertado. Todo dia. Todo dia tenho que ficar olhando dois machos na maior agarração. Quer dizer, se fosse macho mesmo não tinha essa pouca vergonha, que macho que é macho agarra mesmo é mulher. Agora, quando Claudinha passa com aquela calça enfiada no rego, que é uma delícia, eles nem falam nada, dizem que é desrespeitoso. Isso lá é coisa de homem? Se ela sai na rua desse jeito, vem trabalhar na fábrica desse jeito, já sabe muito bem o que a espera. Ela gosta. E vem os dois viado com isso de ter que respeitar, nem olhar mais eles devem. Agora só olham um pro outro. Sai fora. 

E no churrasco? Queriam chamar a mulherada, vê se pode. As funcionárias, as esposas, eles disseram. E as putas? Como é que vai fazer? Agora não posso nem jogar mais. Não vou arriscar. Vai que as duas bichas me agarram. Eu fui, mas fiquei só olhando. Só olhando... Futebol é jogo de homem, quero lá me arriscar? Mas não vou mesmo. Sai fora.
Maldito movimento gay. Querem que todo mundo seja bicha. Vão querer ensinar viadagem nas escolas. Os homens de verdade, machos mesmo, têm que se juntar, se unir, se aglomerar... Agarrar não, que não sou fruta. Não vou cair nessa. Fiz faculdade! Curso de homem! Trabalho em fábrica! Sou homem. De bem. Não sou bicha. Por que é que tenho que ficar olhando dois caras na maior agarração? Sai fora.

Homem. Homem de verdade. Homem de bem. Homem de Deus que não aceita viadagem. Um dia, quando tiver coragem, desce o cacete. Sai fora.

** Baseado em uma conversa com um erro de ser humano.



Para conhecer meus livros, acesse www.mahanacassiavillani.com.br

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Bruno


Este é o último texto que escrevo pra você.
Talvez outros apareçam, mas terão vindo antes.

Eu poderia falar de quanto sofri. Quanto você me fez sofrer.  Quanto eu me fiz sofrer. Mas já fiz isso tantas vezes e nunca terei o que não foi.

Eu poderia me vingar e te pintar como eu te vejo. Ou pior. Poderia até te escrever exatamente como você é, o que incomodaria mais. Mas já fiz isso tantas vezes e nada tira a minha dor.

Eu poderia falar de quanto te amei e das coisas bonitas que vi a seu lado. Mas seria uma mentira. Eu nunca te amei. O que eu amei foi meu desejo de te salvar da sua miséria, de resgatar a menina presa no fundo dos meus olhos.

Nisso somos iguais. Você também só amou o que estava em você.

Eu poderia manchar meus sonhos no papel e escrever uma história do que deveria ter sido. Talvez virasse um best-seller e depois um filme que encheria os olhos de água e fizesse suspirar.

Eu também poderia escrever sobre o desejo. Mas não vou. Agora que ele não existe mais, suas lembranças se misturam à realidade e você só me trouxe memórias tristes. Vejo com olhos que não queria abrir.

O buraco que você deixou foi grande, mas ele está se fechando e não vai deixar cicatriz. Eu poderia acariciá-lo, de leve no começo, depois cada vez mais forte até que estivesse lá. Eu sofreria, sei fazer isso como ninguém, e você seria presença de novo.

Então eu poderia escrever cheia de dor, de desejo, raiva, sarcasmo e vingança, mas não vale a pena.

Minha criatividade não é mais pra você.

Esse texto não é literatura.

Esse texto é uma despedida.

Veio tarde, mas está aqui.


Por favor, não leia.