quinta-feira, 23 de março de 2017

Classe média sofre




A vida de Luli não era fácil. Vinha de uma família pobre que ascendera socialmente nos anos daquele governo que diziam ser o mais corrupto da história. Aquele que havia tirado milhões da miséria e batido o recorde de construção de universidades públicas.

Diferentemente dos pais, possuía um diploma universitário e só não terminara a especialização por motivos de doença. Tentava pela segunda vez. Sabia que, se não tivesse sido aprovada em faculdade pública, não teria podido estudar. No caso da irmã mais nova, a situação havia sido outra, e ela, com a ajuda da mãe, pagara pelo ensino superior. Quatro anos podem fazer muita diferença.

Luli, apesar da boa faculdade, só tivera empregos ruins. Até o presente momento, é importante dizer. Não que atualmente o emprego fosse bom, afinal, empresas são empresas, e a atual não era tão diferente das outras. Alguns diziam que Luli deveria ser grata, já que o pagamento dos salários era costumeiro e só havia atrasado uma única vez. Também diziam, e talvez até acreditassem, que a empresa era boa e que os funcionários faziam horas extras, sem receber, é importante lembrar, porque assim o desejavam. Além disso, gostavam de enfatizar que o desemprego era grande e que estar
empregado era uma benção.

Luli, do alto de sua insegurança, impressionava-se com a burrice das pessoas. Como podiam ser tão burras? Burras, independentemente de onde vinham, de onde estudavam, do que faziam. Realmente burras, Luli pensava.

Sim. Aquele era o melhor emprego que tivera, o que pagava o melhor salário. Mas nada daquilo era caridade, Luli não tinha dúvidas. O que se dava era mera contrapartida por serviços prestados. Se um dia a empresa não desejasse mais tais serviços, a mandaria embora no mesmo instante, sem poréns, sem dilemas.

Além disso, por melhor que fosse o salário, era menos do que suficiente, visto que Luli encontrava-se em situação das mais difíceis, sem saber o que fazer, sem solução a iluminar seus horizontes.

Há pouco menos de uma semana, havia sido convidada pela irmã a fazer uma viagem. Veja só. Com todos os problemas de relacionamento que enfrentavam, para Luli, era um convite no mínimo peculiar. O local: Disneyland. A irmã, em situação financeira muito mais confortável, havia escolhido o parque como local de comemoração da lua de mel e gostara tanto, mas tanto que, menos de seis meses depois, planejava a segunda visita à moradia do roedor mais querido do planeta.

Era um convite com muitas implicações, todas as quais somavam-se à confusão de Luli. Emocionais, intelectuais, relacionais, fraternais.

Mas, à frente de todas e maior que todas, estava ele, motivo de tantas disputas, mortes, sofrimento e separações: o dinheiro.

Para realizar a viagem, Luli teria que gastar mais da metade de todo o dinheiro que havia guardado em toda a sua vida. MAIS DA METADE. Não sabia o que fazer. Diferentemente da irmã, não tinha imóvel em seu nome, não tinha automóvel nem previdência. Nada. Sentia-se desamparada. A injustiça do mundo era pungente.

Como uma pessoa sozinha, precisava cuidar de si. Percebia, em seu dilema, o peso da desigualdade social. Alguns com tanto, outros com tão pouco.

Ir à Disney seria uma memória, o que todos diziam não ter preço. Mas Luli sabia muito bem que era possível contar as notas necessárias para produzir a memória de ir à Disney. Mais da metade de suas economias. Isso se Luli não fizesse muitas compras. De fato, era uma viagem custosa.

E o dólar tão caro.

Seu dilema a consumia e, a cada dia, sem saber o que fazer, alimentava rancor pelo mundo, pela empresa e pela massa inconsciente que nada fazia. Não era justo. Em seu sofrimento, lembrava-se de certo dia em que, ao esboçar seu desejo de viajar a Miami com as despesas pagas pela empregadora, ouviu de pessoa de vida muito mais fácil que aquilo era um absurdo, que era impossível compreender por que Luli teria vontade de viajar daquela forma. A pessoa de vida fácil, em sua generosidade cega, ainda disse que a passagem custava pouco mais de dois mil reais e que Luli poderia guardar o dinheiro e viajar por conta própria. DOIS MIL REAIS. A falta de consciência da realidade social é realmente impressionante, Luli pensava.

Em meio à raiva e à confusão, Luli lembrava-se do episódio e de muitos outros proferidos por pessoas de vida fácil que não eram especialmente más, apenas alienadas e que, por terem privilégios em uma sociedade injusta, acreditavam que todos podiam ir à Disney quando quisessem.

Por meses Luli ponderou, refletiu, contabilizou. Uma verdadeira tortura. Ela fez contas, horas extras, pensou em aumentos. Tudo em prol da caríssima memória que agora desejava criar. Debruçou-se sobre o assunto dia e noite. Incessantemente. Chegava a sonhar com a viagem, mas os sonhos não falhavam em se tornar pesadelos, e ela, relutante, obrigou-se a aceitar a derrota. Era vítima de uma sociedade desigual. Desigual até mesmo no seio da família, que permitia que uma irmã fosse à Disney por dois anos seguidos, sem prejuízo do orçamento, e que impossibilitava a outra de ir ao menos uma vez, a não ser que destruísse o esforço de uma vida.

Luli ficou. Com dor e remorso, ela se deixou ficar, mas, do episódio, aprendeu uma dura lição sobre distinções sociais e injustiça. O mundo é dividido em dois tipos de pessoas: as que vão e as que não vão à Disney. E ela sabia bem qual era o seu lugar.