domingo, 7 de dezembro de 2014

Indigesto




Vítor Ismael é um trombadinha. Só tem dez anos e já passa quase todo o tempo na rua. Na última audiência com o juiz, além de quebrar a porta, levou para casa, quer dizer, para a rua, uma mini esfinge que a oficial de justiça Inês trouxe do Egito. Não, não tinha roubado, ela só teve pena do menino. Nem todo mundo tem culhões para lidar com esses marginais. Ficar com dó de ladrãozinho, onde já se viu?

Daqui a pouco é Fundação Casa. Só depois dos doze é que os bandidinhos podem ser presos. Quando estava no orfanato quebrou os vidros e pulou do primeiro andar para se esconder no esgoto. No esgoto! Tinha comida e cama quente, mas preferiu ficar na merda. Coitado de quem teve que buscar o moleque lá. 

Diego entendeu tudinho nas primeiras frases da psicóloga logo no início do jantar, mas ela continuou mesmo assim. Era loirinha, magrinha, não muito gostosa, mas ele fez cara de interessado. Melhor não perder a noite. Vítor Ismael - isso lá é nome de gente? - falou que queria ir para a Itália. Faça-me o favor, não vai nem para a escola e acha que vai para a Itália? Segundo a psicóloga, o caso do menino era delicado. A maluca resolveu contar tudo.

É muito difícil criar vínculos com Vítor Ismael, ele não confia em ninguém. A mãe dele vive na rua e tem problemas com drogadição. Vítor foi para o acolhimento institucional, junto com a irmã, quando tinha apenas cinco anos.

A avó das crianças gostaria de ter ficado com elas, mas já cuidava de outros quatro netos e era muito pobre, por isso foi convencida pelos assistentes sociais a abrir mão dos dois.

Logo um casal o adotou. Estranho, Vítor não era um bebê branco do sexo feminino. Era um menino negro com seis anos de idade. Ele não queria se separar da irmã, mas a escolha não era sua. Foi devolvido antes mesmo que o período de adaptação terminasse.

De volta à casa de acolhimento, percebeu que uma moça bonita visitava sua irmã constantemente. O casal Marco Antonio Pinto Gouvêa e Regina Pinto Gouvêa, da Pinto Gouvêa Advocacia, adotou Vítor e sua irmã, Luana. Na verdade, eles queriam apenas a menina, mas cederam à pressão e levaram os dois.

As crianças viajaram à Disney, foram a festas com pula-pulas, tomaram milkshakes e ganharam patins. Luana estava sempre no colo de sua nova mãe e dormia no quarto que tinha mais brinquedos. Às vezes brigavam com o garoto, mas tudo bem, agora ele tinha uma mãe, um pai, muitos brinquedos e a companhia da irmã.

Um dia, Dona Alzira, a empregada, fez uma mochila com algumas roupas de Vítor e disse que iriam passear. Pegaram o ônibus em silêncio e ele foi deixado no abrigo. Dona Alzira disse que voltaria logo para buscá-lo. Não voltou.

Todos os dias o garoto perguntava quando iria para casa, mas ninguém respondia, só faziam uma cara estranha que ele não entendia bem. Queria ver a irmã e viajar com ela para a Europa, como seus novos pais haviam prometido.

Sem aguentar mais a espera, Vítor pulou o portão de dois metros e foi andando até a casa de sua família. Quando recebeu a notícia do porteiro, Regina Pinto Gouvêa chamou a polícia e não permitiu que sua princesinha chegasse perto da janela até que a situação estivesse contida. Logo, ela não perguntaria mais sobre o irmão.

Vítor foi amarrado e levado ao hospital psiquiátrico, onde o medicaram. Ele dormiu por dois dias seguidos. Depois disso voltou para a casa de acolhimento. Fugiu em menos de uma semana. Durante meses tentou se reunir com a família. Não se soube dele por um tempo, mas um dia ele reapareceu na cidade vizinha, aparentemente procurando pela mãe, a biológica dessa vez. 

A psicóloga que não parava de falar, contou que o pivete tinha feito amizade com uma tal de Jacira, de uma dessas ONGs sustentadas pelo governo. Diego ouvia tudo fazendo cara de comovido. Nem vir com uma blusa decotada a maluca tinha vindo.

Jacira tentava levar Vítor Ismael para a casa da avó materna. Ele não ficava lá por muito tempo. Fugia para procurar a mãe. Sempre perguntava por que a avó não ficara com ele e a irmã. Ela se sentia culpada e queria reparar o erro. Era miserável. Tinha uma vida miserável. Mas também tinha amor. Amor e vontade de cuidar do menino. 

Dá pra acreditar que o moleque apontou pra polícia o traficante procurado, na frente de todo mundo? Nem sei por que não apareceu picadinho num monte de saco de lixo pela cidade. A psicóloga queria aos poucos fortalecer o vínculo que o moleque tinha criado com a avó. Coisa estúpida, ele precisava mesmo era de uma surra, mas a maluca estava convencida de que iria salvar o trombadinha.

Diego ouviu tudo o que ela disse. Quando abriu a boca foi só para dizer que a sociedade estava mesmo perdida. Sentia-se frustrado, teve que escutar aquele monte de baboseira de uma mulher nem tão gostosa que, no fim, não conseguiu comer.

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