domingo, 9 de agosto de 2015

Danaus plexippus




Lembrava-se da picada que ficou vermelha rapidamente e foi crescendo até chegar a um roxo claro, mas não lilás, em relevo. Texturas e cores. Vira com certa inveja o bicho sendo expelido, se contorcendo como festa. Achava lindo saber tanto. Data e hora da invasão. Marca, história, cicatriz.

A ferida estava quase se fechando para sempre. O invasor tinha que sair, e a preocupava. Não era berne, mas talvez tivesse a pureza da minhoca espremida pelo avô do pé da irmã. Uma memória cheia de nojo e afeto.

A irmã não se lembrava do acontecimento, mas ela nunca esqueceria porque aquela era a raiz de tanta diferença entre as duas. Ela, presa no quarto. A irmã, jogada no mundo, toda voltada pra lá e ela toda voltada pra cá. 

Por que sempre procuramos os extremos? A irmã cada vez mais fora e ela parando sem nunca perceber. Quando viu, já era tarde, estava imóvel em uma cama. Paralisada de tanto pensar, sem entender sua invasão, sem sabê-la. Lutando? contra um monstro que não sabia existir. 

Ninguém sabia o porquê de tanta tristeza. Sua vida era boa. Tinha amor, tinha dinheiro. Quer um chocolate, filhinha? Ela também não sabia. A inveja da irmã não era real. Não queria saber seu invasor nem suas cores. Achava que se soubesse teria que o expelir e então ficaria só. Por isso não se mexia, para que nada novo acontecesse e ela não tivesse que enxergar. 

Foi assim que aprendeu. Uma traição fazer diferente. E a solidão. Ela, sempre só, com medo de ficar sozinha. Sem saber que invasores nunca acompanham, só invadem. Roubam a vida que se deixa passar. 

E a irmã pra fora, se mexendo e ela pra dentro, quase sem sair. Livros nunca foram o bastante, mas um dia deixaram mesmo de ser. E então a doença. Depois de espiar pelo buraco da fechadura, o não. Foi assim que tudo começou quando parecia ser uma pausa. E o ficar imóvel era na verdade um se mover. Abrir os olhos apenas. Tão difícil, cerrados, sem cílios em pálpebras amarelas de conjuntivite. 

E quando ela os abriu, viu o escuro de suas mãos comprimindo, tentando cobrir. E já foi uma noite diferente. E ela continuou sem saber se queria, se escolhia ou se podia ser. 

Quanto mais imóvel mais se mexia. O sofrimento dos opostos. Sem equilíbrio. Sem comunhão. E ela morreu. Lenta e dolorosa, mas não como se imagina. Não foi cheio de lágrimas e romance. A morte foi feita de gritos, palavrões e mau cheiro. De soluços, catarro e humilhação. Ela não chorou, ela gritou e esperneou como um porco no abate. E ela morreu e foi cercada por terra escura e fria. O silêncio.

E no silêncio ela pôde ouvir. E no frio ela pôde queimar. E no escuro ela pôde ser luz. E então descobriu que era seu próprio invasor, se despiu de suas roupas de humano e de borboleta à larva, foi. 

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domingo, 2 de agosto de 2015

Meu herói



Ele é um menino assustado, nunca foi bom no futebol. Não o suficiente. Teve família, teve comida, teve amor, estudou, vai na igreja, tudo certo. Não tem o que disseram. 

Imagina quando vai ser o que devia, dirigir carros velozes, matar o bandido, salvar a mocinha, como nos filmes. Ele é o herói.

Queria arma, só pra se proteger. Não vai atirar, tem medo, só pra se defender. Bandido bom é bandido morto. Não pode deixar estuprador solto, assassino solto. Pena de morte, arma pro cidadão, não pro bandido. Ele não é mau, ele é o herói.

Fez tudo certo. Estudou. Trabalhou cedo, 20 anos, é justo ter carro. Vem vagabundo querendo roubar. Não tem nada contra negros, tem amigos, colegas de trabalho que são. Não é justo as cotas, ele estudou, se esforçou e o outro nem sabe ler e rouba vaga na faculdade. Viu a notícia do catador de papelão que passou no concurso. Ele não é preconceituoso, a escravidão já acabou faz tempo, ele não escravizou ninguém. Fez tudo certo e agora tem um emprego mais ou menos e o preto que entrou depois já ganha mais que ele. Não pode, ele é o herói. Estudou, se esforçou, entrou primeiro. 

Ele faz tudo certo, respeita mulher, abre a porta do carro, não tem coragem de chegar. Quer casar, na igreja, tudo certo. Ele não é mau, ele é o herói. E vêm as feministas dizendo que tá errado. Ele é contra estuprador, bandido bom, bandido morto, mas a mocinha fica com o bandido, não com ele que é o herói. Todas putas, menos pra ele.

Ele vai na igreja, quer casar. Casamento entre homem e mulher, tá na bíblia. Ele não leu. Aí vem os gays, se abraçando, se beijando, na rua. Casal, casados, não pode. Ele é o herói e os gays com o amor que era pra ser dele. Tá errado. Viu que eles querem legalizar a pedofilia, não pode. Ele é o herói, vai salvar as criancinhas.

Ele é o herói. Acreditou na mãe, acreditou no padre, acreditou no filme. Ele tá certo. Por que sua vida não dá certo? Não é como disseram. Ele tá certo. É o mundo. O mundo tá errado. São os negros vitimistas querendo roubar o lugar dele que estudou, se esforçou, fez tudo certo. São as feministas que fazem mulher não gostar mais de homem. São os gays roubando o amor que era pra ser dele. Ele é o herói, vai consertar, bandido bom, bandido morto. 

Feliciano, Bolsonaro, de Carvalho. Eles tão certos. Falam certo. Têm seguidores, fazem sucesso. Ele vai copiar, São Paulo tem que separar. Ditadura, não gayzista. Feminazi não quer dar. Não pra ele. Lésbica peluda, tá errado, no filme pode. Negro vitimista, rouba o lugar. Não vai deixar. 

Ele fez tudo certo, o carro é dele, a mulher é dele, a igreja é dele, o emprego é dele. Ele é o herói. Não vai deixar ninguém tirar o seu lugar.

Ele tem uma arma.

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