Mari é uma feminista branca de apartamento. Além da questão da mulher, outras lutas a inquietam. Racismo, homofobia – de transfobia nunca ouviu falar –, desigualdade e pobreza estão dentre suas preocupações. É desconstruída.
De tudo isso, o que mais a perturba são seus próprios problemas. Vestidos de feminismo branco de apartamento. Em bairro nobre.
Não é má pessoa. Afinal, quanto é realmente possível estar no outro?
Sabe que é difícil ser mulher. Em apenas um dia de trabalho, tanta coisa acontece.
Segunda-feira, por exemplo.
Mari sentiu-se mal durante o almoço, pois, ao entrar em um recinto comercial, como acontece às vezes, supôs que uma pessoa negra parada ali fosse funcionária do local. Sentiu-se mal, mas se perdoou. Sabe que é difícil supor que pessoa de tal cor e em tal recinto seja algo além de funcionária. É fruto da sociedade racista e extremamente desigual em que vivemos.
No mesmo dia, em conversa corriqueira perto da máquina de café, indignou-se ao ouvir que na empresa não havia negros. Não ficou surpresa com o preconceito das pessoas, a isso já estava acostumada, mas se indignou com a invisibilidade estrutural que os negros enfrentam em nossa sociedade, afinal a faxineira, a copeira e diversos membros do call center eram sim de pele escura e, apesar de, enquanto pessoa consciente perceber que estes não são cargos de chefia, sabe também que trabalhar em uma grande empresa já é um grande passo para sair das margens.
Mari sabia que tinha muito a aprender, mas não se deixava levar. Era uma pessoa equilibrada e, ainda na fatídica segunda-feira, ao ouvir que não havia pessoas de cabelos cacheados na empresa, revoltou-se e disse que usava chapinha sim porque acreditava que, dessa forma, ficava mais bela e não havia problemas nisso. Para uma mulher, é importante se colocar. Além disso, feminismo é liberdade, sempre soube.
Às vezes, tinha dificuldade para entender as pessoas. Não compreendia por que sua secretária do lar ainda mandava mensagens perguntando se podia pegar algo da geladeira. É claro que podia, ela já havia dito mil vezes.
Questões como essas povoavam sua mente, pois sabia quanto era difícil ser mulher nesse mundo. Hiperssexualizada, opiniões desvalorizadas, preterida em promoções, temendo andar nas ruas, no metrô. Sentia profundamente a dor de ser mulher. Por vezes, chegava a pensar que...
Mas não se deixava radicalizar pelo medo. Entendia o poder que o medo tem de nos levar a extremos. Era uma agressão sem tamanho dizer a uma criança com câncer, uma criança, veja só, que ela não poderia usar um turbante. E turbantes nem são exclusividade da cultura africana. Mari tinha conhecimento desse dado porque estudava. Era importante.
Procurava se inteirar de assuntos feministas e apoiá-los. Adorava Jout Jout e já tinha perdido a conta das vezes que assistira Survivor, de Clarice Falcão. Gostava muito mais do que a versão de Beyoncé. Sabia quanto era importante para as mulheres se colocarem e quase não perdoava as que não o faziam.
Havia sido um dia difícil, cheio de lembranças de opressão cotidiana. Era o seu ser mulher. Voltou para casa exausta depois de tantas discussões. Pôs o lixo para fora. Maria o deixara na porta da sala, mas decidiu não falar nada, era só um lapso, e Maria era uma boa pessoa. Não se importou de descer até o térreo, caminhar até a lixeira, voltar pelo longo caminho e subir novamente. Era uma boa pessoa também.
Tudo bem.
Entrou em casa. Atrás de si, fechou a porta e seguiu com seu feminismo. Branco. De apartamento.
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