quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Filhos do Vento



Quando tudo está perdido, os ciganos olham para o céu. Lily ouvia as palavras proferidas pelo sábio Miguel como se cada uma delas pudesse salvar a sua vida. Talvez pudessem. 

Não era um cigano comum e não gostava de falar de si, mas, do pouco que sabia, Lily apreendia ancestralidades. Miguel também havia sido treinado como mago, no entanto, preferia surgir sob o símbolo do povo nômade porque gostava de se sentir mais próximo das pessoas.

Sua cor era o roxo.

Lily gostava de Miguel e gostaria que Miguel gostasse dela. Todas as terças conversavam. Atendimento, era o nome dado na instituição. Já fazia algum tempo e o progresso era lento. Coisas da mente e do espírito, que Lily, em seus delírios de culpa, não podia compreender.

O cigano Miguel a incentivava a viver, a não desejar a morte e, principalmente, a não morrer em vida. O culto ao amor, às festas e o otimismo resiliente face a todas as dificuldades são característicos da linha dos ciganos e, por isso mesmo, Lily fora direcionada a ela. 

Frequentemente recebia ofertas de vinho, frutas e sugestões em relação ao modo de encarar a vida. Aceitava de bom grado o vinho, as frutas; e as sugestões em relação ao modo de encarar a vida ficavam para uma próxima. 

Mas não seria possível que tantas ondas de energia espiritual, tantas velas, tantos momentos em cômodos preparados não surtissem efeito. Falava com Miguel, finalmente, sobre a vida, parte dela, que podia ou não ser boa e decerto era negligenciada.

Era o amigo de um ex por quem muito sofrera. À pessoa que questionara por que aqueles homens seriam amigos se realmente fossem tão diferentes, nada dissera. A Miguel, falara sobre conversas e momentos agradáveis de acolhimento. Tudo o que ela sempre desejara, mas nunca obtivera do pai. E, só mais tarde descobriria, da mãe.

Miguel, em sua sabedoria, falara sobre a vida, sobre a importância de buscar aquilo que nos faz bem e sobre muitas coisas belas e poéticas que Lily não saberia reproduzir. A ela, o cigano entregou duas maçãs, dizendo apenas e enigmático que as frutas são perecíveis.

Assim que saiu da instituição, Lily enviou uma mensagem ao amigo do ex dizendo que precisava dar a ele uma coisa e que precisava ser o mais rápido possível. O homem, que costumava demorar para responder mensagens, dessa vez não o fez e no mesmo instante e marcou o encontro para o dia seguinte.

Lily preparara-se para fazer o necessário assim que estivessem no carro, pensou que não conteria a ansiedade, mas o medo foi maior. Quando chegaram ao restaurante, o amigo do ex perguntou o que ela precisava tanto dar. Lily respondeu que teria vergonha de fazer aquilo no restaurante, que seria melhor resolver tudo depois do jantar. Ele concordou. Saíram do italiano já de madrugada, a noite havia sido muito agradável apesar do garçom que ria dos dois como se fossem crianças.

Quando ele estava pronto para deixá-la na porta de casa, a tensão crescia e não havia mais desculpas. Lily precisava vencer o medo e partir para a ação, não havia mais como fugir. Era chegada a hora.

Contendo o tremor do nervosismo nas mãos, quase imóvel, sem coragem de olhar para os lados, entregou a maçã. Não conseguiu dizer nada. O amigo do ex começou a comê-la imediatamente. Disse que era seu tipo de maçã preferido, que, se fosse ao mercado, era exatamente aquele tipo de maçã o que escolheria comprar, disse ainda que estava crocante, na consistência certa, e com o exato equilíbrio entre doce e azedo. Comeu até o caroço. Perguntou se ela não comeria a dela e perguntou qual era mesmo a história das frutas.

Lily mordeu a sua já um pouco murcha e disse, ganhei de um cigano na Umbanda, mas juro que não a esfreguei nas minhas calcinhas. 

Ele riu desconfortável, enrubescendo. Lily pensou que ele não conseguia olhar para ela.

Saiu do carro e entrou em casa também sem conseguir olhar para si mesma.

Jogou o resto da maçã fora. Nunca fora sua fruta preferida.

Não se viram novamente.

Viver, nunca mais.