domingo, 22 de fevereiro de 2015

Não te moves






Três da tarde não é uma boa hora para almoçar, Beto não tinha companhia. Seus horários desregrados o permitiam ir a festas em segundas-feiras, mas muitas vezes o privavam do convívio com amigos das nove as seis, como costumava dizer. Não havia problema, seu almoço, na verdade, era o café-da-manhã. Qual o sentido de levantar antes do meio-dia?

Acordara desejando ardentemente um croissant, aquele do bistrô francês em Pinheiros. Levaria meia hora, talvez quarenta e cinco minutos para chegar. Acabou por escolher um restaurante simples, perto de casa, vez ou outra comia lá. Pediu um sanduíche para a mulher que sorria como se o conhecesse. Será que... ? Não se lembrava, talvez já a tivesse encontrado antes, resolveu sorrir como se assim fosse, desse modo evitaria ser rude e, quem sabe, poderia ter companhia aquela noite. Ela era bonita, tinha pernas longas e um sorriso incrível.

Cinco minutos depois, Beto se remexia na cadeira, ansioso à espera da comida. Porque demorava tanto? E a mulher sorridente, onde tinha se metido? Não parava de pensar nela. Será que a conhecia? De onde? Precisava vê-la novamente. Sua inquietação só aumentava. Aproximadamente sete minutos após a entrada de Beto no restaurante, seu pedido chegou com uma moça que ele definitivamente não conhecia, mas estava determinado a provar.


Ela tinha cabelos e olhos castanhos, nada de mais. Bonitinha, mas nada de mais. Sua camiseta, com as palavras: Neutral Milk Hotel e sua tatuagem, que dizia “Não te moves de ti”, convenceram Beto de que ali estava a mulher de sua vida segurando um sanduíche. Beto sabia que a banda da camiseta não era muito conhecida, mas o que o cativou foi a junção camiseta + tatuagem. Nunca contara a ninguém, mas tinha planos de musicar os poemas eróticos de Hilda Hilst à moda da banda desconhecida. Aquilo não podia ser coincidência e, mesmo que fosse, onde encontraria uma mulher capaz de apreciar essa combinação tão inusitada? Tinha que aproveitar esse presente do universo. Por um instante ficou nervoso, sem saber o que fazer. Logo sorriu. Iria conquista-la, era isso que faria.

- Já tive mulheres deslumbrantes, mas agora quero você.

A moça, claramente irritada, ficou quieta. Péssima introdução, Beto precisava consertar a frase que agora percebia abominável.

- Você acredita que ouvi alguém dizer isso agora pouco, vindo pra cá? Não é incrível o que as pessoas têm a coragem de dizer?

- É foda o que a gente passa.

A frase nem um pouco graciosa não incomodou o já apaixonado Beto.

- Sua camiseta só é menos interessante que sua tatuagem. Quero sair daqui com você.

A garçonete revirou os olhos, aquele cara era um imbecil. 

Ele não aceitaria derrota. Pediu sobremesa, café, água, suco, de novo café. Toda vez que ela aparecia, tentava fazer alguma menção à banda da camiseta ou aos versos de Hilda, certo de que a entretinha e encantava.

Primeiro, ela se irritou, depois achou divertido, depois ainda, achou que as associações que aquele homem fazia eram interessantes. Se sentiu lisonjeada. Quando seu turno terminou, ele estava ali há pouco mais de 2h. Na visão da garçonete, ficar tanto tempo naquele lugar insuportável era realmente um grande sacrifício. Estava impressionada. 

Sozinha, sem planos para aquela noite, resolveu se arriscar, se ele acertasse, iria com ele. Parou em frente à mesa e disse:

Como se tudo o mais me permitisses...

Ele sorriu - ...assim te somo a mim.

Ela não pôde acreditar. Esse tipo de coisa não acontece. Era incrível. Desde que se tornara uma leitora de poesia, Rafaela inventara um pequeno jogo. Escolhia dois versos que captavam a essência do poema. Eles não precisavam ser em sequencia, geralmente não eram, mas ficavam lindos juntos. Não era do tipo que acreditava em destino, mas aquela era uma evidência inegável. Aquele homem pançudinho e um pouco broxante não só reconheceu a frase do melhor poema da melhor poeta, como acertou o verso que, não na sequencia, captava a essência de tudo aquilo que deveria ser o amor. Por um momento ficou em dúvida, talvez ele tivesse se enganado e achado que o verso era realmente a sequencia do outro. Mesmo assim, isso deveria ser uma mensagem dos céus que ela não tinha certeza se existiam. E a barriguinha dele nem era tão broxante assim.

Deixaram o restaurante juntos, ela se esforçou para tirar o cheiro de fritura das mãos e dos cabelos. Ele, em delírio, estava apenas semiconsciente de seus atos tamanha felicidade. No carro, conversaram sobre bandas e poetas. Ela gostava mais de livros que de música, tudo bem, ninguém é perfeito. Ela pensou o mesmo sobre ele, só que ao contrário.

Após uma noite cheia de três pontinhos, Beto estava cheio de sonhos de uma vida juntos. Rafaela sonhou com o ex-namorado, muito mais habilidoso com as mãos. Assim que acordaram, começaram a conversar animadamente enquanto liam o jornal. Ao ler uma matéria sobre as próximas eleições, Beto quase perdeu os sentidos. Seu mundo caiu.

Toda a promessa de felicidade desapareceu. Os filhos, a casa na praia, o sexo selvagem, as viagens à Ásia, tudo perdido. No lugar dos planos e sonhos de uma vida, apenas a dor pungente de se descobrir em ilusão.

Num instante, tudo estava acabado, ela era malufista.

2 comentários:

  1. Um belo texto, fala de coisas que todos queremos viver, uma vida sem horários. Parabéns

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    1. Obrigada pelo comentário, Eric. Fico feliz que tenha gostado! :)

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