segunda-feira, 30 de maio de 2016

Tudo para mim, nada para os outros


Ontem assisti Requiem for the American Dream, que começa com as credenciais de Noam Chomsky - apenas um dos intelectuais mais influentes de nossa época. O documentário é baseado em uma série de entrevistas feitas durante quatro anos. Já vou dizer que achei a legendagem bem mais ou menos, podiam ter feito um trabalho muito melhor nessa parte. Já vou dizer em segundo lugar que esse post é basicamente um monte de citação que eu adorei. É o Noam Chomsky, mano, achei melhor deixar ele "falar". 


A primeira coisa que Chomsky diz é: "A desigualdade é realmente sem precedentes" ... "a desigualdade vem da riqueza extrema em uma pequena parcela da população, uma fração de um por cento." 


Sabe aquele maldito um por cento? Pois é, mas o que tem de errado com isso, fora a raiva incontrolável que dá?


"Não só é extremamente injusta por si própria, a desigualdade tem consequências muito negativas em toda a sociedade, pois a sua simples existência tem um efeito corrosivo e prejudicial à democracia."


"É importante entender que setores privilegiados e poderosos nunca gostaram da democracia por vários bons motivos. A democracia coloca o poder nas mãos do povo e tira deles."


O documentário é uma análise da sociedade americana, mas tem muita coisa que faz pensar. Há várias semelhanças com o Brasil. É tudo bem esquematizado e organizadinho. São apresentados OS 10 PRINCÍPIOS DA CONCENTRAÇÃO DE RIQUEZA E PODER.


"A concentração de riqueza gera a de poder, principalmente conforme o custo das eleições aumenta muito, o que força os partidos políticos a serem controlados por grandes corporações."


OU POR QUE NÃO PODEMOS TER FINANCIAMENTO PRIVADO DE CAMPANHA POLÍTICA.


"E esse poder político logo se estende à legislação, que aumenta a concentração de riqueza. Então a política fiscal, como a tributária... desregulamentação... regras de governança corporativa e toda uma série de medidas políticas são desenvolvidas para aumentar a concentração de riqueza e poder que, em troca, faz com que mais poder político faça a mesma coisa. E isso é o que temos visto."


Ou seja, acabamos tendo um governo dominado pelos interesses privados. Não parece bom.


"As pessoas que Adam Smith chamou de ‘mestres da humanidade’, e eles estão seguindo a máxima vil: ‘tudo para nós e nada para os outros’. Eles buscam políticas que os beneficiem e prejudiquem o restante. E na falta de uma reação popular geral, é isso mesmo o que acontece."


Os 10 malditos princípios são:


1 - Reduzir a democracia
2 - Moldar a ideologia
3 - Redesenhar a economia
4 - Deslocar o fardo
5 - Atacar a solidariedade
6 - Controlar os reguladores
7 - Controlar as eleições
8 - Manter a ralé na linha
9 - Consentimento na produção
10 - Marginalizar a população


Não é lindo? Só pela lista já dá pra imaginar quanta coisa boa vem por aí <3



Princípio 1 - Reduzir a democracia

Basicamente, há uma luta constante entre forças democratizantes, que costumam vir de baixo (ou seja, de nós, o povo) e esforços de controle, que costumam vir de cima (ou seja, de gente muita rica e das grandes corporações). Eu diria que, no momento, estamos no meio de uma gigantesca onda reacionária. Não tá fácil.


"O interessante é que esse debate tem uma tradição bem antiga. Remonta ao 1º grande livro de sistema político, Política de Aristóteles. Ele diz: ‘De todos eles, o melhor é a democracia’, mas aí ele aponta a mesma falha apontada por Madison (legislador da constituição americana). Se Atenas fosse uma democracia para homens livres, os pobres se uniriam e tomariam as propriedades dos ricos. (...) Aristóteles propôs o que atualmente chamamos de Estado de bem-estar. Ele disse: ‘Reduza a desigualdade.’ Então, mesmo problema, soluções contrárias. Uma é reduzir a desigualdade, assim acabará com o problema. A outra é reduzir a democracia."



Princípio 2 - Moldar a ideologia

Esse aqui é autoexplicativo, né? Taí o Deus Mercado, cheio de seguidores dispostos a morrer por ele, que não nos deixa mentir.


"Está havendo uma enorme, concentrada e coordenada ofensiva empresarial que se iniciou nos anos 70 para tentar reduzir os esforços de igualdade."



Princípio 3 - Redesenhar a economia

Sabe o Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street? Ele é um puta de um babaca, mas parece que isso é o bonito agora.


"Desde os anos 70, há um esforço concentrado por parte dos mestres da humanidade, os donos da sociedade para mudar a economia em dois aspectos cruciais. Primeiro, para aumentar o papel das instituições financeiras, bancos, firmas de investimento, seguradoras."


"Esse fenômeno é chamado de financeirização da economia."


"Junto, está a realocação da produção. O sistema de comércio foi reconstruído com um design bem explícito de colocar trabalhadores competindo entre si no mundo todo. E isso leva a uma redução na parcela de renda por parte dos trabalhadores."


"E, claro, o capital é de livre movimentação. Os trabalhadores e o trabalho não podem se mover, mas o capital pode. Voltando aos clássicos, como Adam Smith, como ele indicou, a livre circulação do trabalho é a fundação de qualquer sistema de livre comércio, mas os trabalhadores estão presos."


E, claro, não vamos nos esquecer de sempre alimentar o medo.


"Manter os trabalhadores inseguros os manterá sob controle. Eles não vão pedir salários decentes, boas condições de trabalho, ou a oportunidade de associação livre, de sindicalizar. Para os mestres da humanidade, tudo bem. Eles ganham seus lucros. Mas para a população é devastador."


"Esses dois processos, financeirização e realocação, são parte do que leva ao círculo vicioso de concentração de renda e de poder."



Princípio 4 - Deslocar o fardo

Coitadas das grandes corporações multibilionárias. Quem vai pagar os impostos? Acertou. Você.


"Durante o período de grande crescimento da economia, nos 50 e 60, mas, na verdade, antes disso, os impostos sobre os ricos eram bem maiores. Os impostos corporativos e sobre os dividendos eram bem mais altos, os impostos comuns sobre riqueza eram bem maiores. O sistema de impostos foi reprojetado para que os impostos pagos pelos muitos ricos sejam reduzidos e, em contrapartida, o fardo dos impostos aumente para o resto da população. Agora há uma mudança para tentar manter os impostos só sobre salários e consumo, o que todos têm que pagar, não algo como dividendos, que só cabe aos ricos."


"Se você quer aumentar os investimentos, dê dinheiro aos pobres e trabalhadores. Eles têm que sobreviver, então gastam suas rendas. Isso estimula a produção e o investimento, leva a aumento de empregos e assim por diante."


"As grandes corporações americanas deslocaram o fardo de sustentar a sociedade para o resto da população."



Princípio 5 - Atacar a solidariedade


Acho que essa é a mais cruel de todas. E como tem gente adotando esse tipo de pensamento. É comum dizerem que simplesmente não dá pra pagar a conta da previdência. O que faz então? Deixa o povo morrer de fome? 

"A solidariedade é muito perigosa. Do ponto de vista dos mestres, você só deve se preocupar consigo, não com os outros.


"A seguridade social é baseada em um princípio de solidariedade. Solidariedade, se importar com os outros. A seguridade social significa: ‘Eu pago impostos sobre salários para que a viúva do outro lado da cidade possa receber ajuda para viver’".


"Não há muita utilidade para os muito ricos, então há uma tentativa combinada de destruí-la. Uma das formas é retirando os fundos. Você quer distribuir um sistema? Tire os fundos dele. Então, ele não funcionará. Todos ficarão bravos. Vão querer outra coisa. É uma técnica padrão para privatizar um sistema."


Veja o que fazem com a USP, com o Sistema de Saúde, com as escolas públicas. É exatamente isso.




Princípio 6 - Controlar os reguladores

Sabe todas aquelas crises? Quem as causou é quem faz as leis.


"Toda vez, o contribuinte é chamado para socorrer aqueles que criaram a crise, de forma crescente, as instituições financeiras. Em uma economia capitalista, você não faria isso. Em um sistema capitalista, isso acabaria com os investidores que fizeram os investimentos de risco. Mas os ricos e poderosos não querem um sistema capitalista. Eles querem poder correr para o Estado paternalista ao terem problemas e serem socorridos pelos contribuintes. Chama "Grande Demais para Quebrar".


"Enquanto isso, para os pobres, deixem os princípios de mercado prevalecerem. Não espere ajuda do governo. O governo é o problema, não a solução. Isso é, essencialmente, neoliberalismo. Tem um caráter dualista que remonta à história econômica. Um conjunto de regras para os ricos. Regras contrárias para os pobres."




Princípio 7 - Controlar as eleições

Há inúmeras formas de se fazer isso, financiamento privado de campanhas é apenas uma delas.




Princípio 8 - Manter a ralé na linha

Sindicatos têm muitos problemas, mas eles desempenham um papel importantíssimo na democracia.


"Um dos motivos principais dos ataques concentrados, quase fanáticos a sindicatos e movimentos trabalhistas, é que eles são uma força democratizante. Eles fornecem uma barreira que defendem os direitos dos trabalhadores, mas também os direitos populares. Isso interfere na prerrogativa e poder daqueles que possuem e gerenciam a sociedade."

  


Princípio 9 - Consentimento na produção

Consumismo, motherfucker!


"Ficou claro, há um século, que não seria tão fácil controlar a população à força. (...) Então era preciso ter outras formas de controlar. E era de conhecimento e expresso que você tinha que domá-las controlando suas crenças e atitudes. Uma das melhores formas de se controlar pessoas em termos de atitudes é o que o grande economista político Thorstein Veblen chamou de fabricar consumidores."


"A ideia é tentar controlar todo mundo, transformar toda a sociedade no sistema perfeito. O sistema perfeito seria uma sociedade baseada em uma díade, um par. O par é você e seu aparelho de TV, ou, talvez agora, você e sua internet, que lhe apresenta o que deveria ser a vida apropriada, que tipos de engenhocas você deveria ter. E você passa seu tempo e esforço para obter essas coisas que não precisa, não quer e talvez jogue fora, mas essa é a medida de uma vida decente."




Princípio 10 - Marginalizar a população

Quando a gente descobre que não tem voz:


"Isso levou a uma população brava, frustrada, que odeia instituições, que não está agindo construtivamente para reagir a isso. Há mobilização popular e ativismo, mas em direções bem autodestrutivas. Está tomando a forma de raiva sem foco, ataques uns contras os outros e em alvos vulneráveis. É o que acontece em casos assim. Corrói as relações sociais, mas esse é o objetivo. O objetivo é fazer as pessoas odiarem e temerem umas às outras, e se preocuparem só consigo mesmas, não fazer nada para os outros.



Diante de tanta manipulação de primeira, o que podemos fazer? Chomsky termina citando Howard Zinn:


"O que importa são os incontáveis pequenos atos de pessoas desconhecidas, que fundam as bases para os eventos significativos que se tornam história."



O caminho é a microrresistência. Vamos à luta!

Para conhecer meus livros, acesse www.mahanacassiavillani.com.br

sábado, 14 de maio de 2016

Como conversar com um fascista (ou o poder do medo)

O outro, esse alguém que tratamos como se não fosse ninguém, é o desafio ético-político em uma sociedade que trabalha pela garantia de direitos fundamentais e pelo respeito à singularidade.


Então, ? O mundo é esse agora. Gente falando em cristofobia, com orgulho de dizer que há racismo contra brancos e que páginas no facebook que tratam a heteronormatividade com ironia são heterofóbicas. Hoje em dia, muitas pessoas deixam de conseguir empregos, são expulsas de shoppings e bares e até chegam a ser assassinadas porque são héteros, não é mesmo? Bitch, please.

Não tá fácil ler o que andam escrevendo pelo facebook da vida, não tá fácil conviver em sociedade e definitivamente não tá fácil ser uma militante da ditadura gayzista-feminazi-contra a família e o capetalismo-com o capiroto-pela banalização do brigadeiro de pistache, viu?

Por isso eu fui ler Como conversar com um fascista - reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, da Marcia Tiburi. Porque é isso o que eu faço quando ando meio perdida (ou em qualquer ocasião), eu leio. Mas o que seria um fascista mesmo?

O diálogo se torna impossível quando se perde a dimensão do outro. O fascista não consegue relacionar-se com outras dimensões que ultrapassem as verdades absolutas nas quais ele firmou seu modo de ser.

Não é exatamente uma definição, mas explica bem qual é a ideia e o problema todo da coisa. Não enxergar e não conseguir se relacionar com o outro a ponto de querer aniquilá-lo. Infelizmente isso anda muito comum.

Ler o livro foi uma coisa meio estranha, eu ficava pensando que aquilo tudo era um exagero, mas, ao mesmo tempo, sabia que ela estava descrevendo com perfeição algumas pessoas que eu conheço. Talvez seja meu medo de enfrentar essa coisa horrível que o mundo está se mostrando ser.

Como conversar com um fascista já está na 5ª edição, não sei quais foram as tiragens, mas é a 5ª edição, pô. Será que dá pra ter alguma esperança na humanidade? O prefácio do livro foi escrito pelo Jean Wyllys, que fala:

A maioria da população brasileira está há décadas alijada do direito a uma educação de qualidade que lhe faça cidadã com capacidade de pensamento crítico e de reconhecimento da diversidade cultural e humana. A ampliação do acesso ao sistema formal de educação - incluindo aí o ensino superior -, sobretudo na era Lula, não significou acesso a uma educação de qualidade. 

A questão que ele levanta é importante. Mais pessoas tiveram acesso à educação, mas que educação foi essa? Só que é muito mais do que isso, os ditos estudados, os que frequentaram os melhores colégios e faculdades, também faltaram na aula de empatia. Todo mundo esqueceu da tia falando que não podia bater no coleguinha e nem rir dele. Falta acesso de modo geral, mas também falta uma educação mais humanizadora.

Como conversar com um fascista é composto por vários ensaios que tratam de diversos temas: afeto, ódio, genocídio indígena, analfabetismo político, indústria cultural, democracia, cultura de estupro, questões da intelectualidade e da linguagem e aborto.

Como disse, em alguns momentos me pareceu que a autora estava exagerando, mas o mundo anda tão maluco que eu me pergunto se não tive essa impressão porque vivo protegida dentro da minha bolha. Não consegui decidir. Mesmo assim, continuo achando o livro fantástico e o recomendo.

De tudo o que Marcia Tiburi diz, o que mais me chamou atenção foi a evidência do papel do medo em todo esse ódio e violência que se espalham por aí.

O mito da segurança tornou-se incontestável em uma sociedade movida pelo medo. O medo é o cerne profundo da conservação e, no extremo, do conservadorismo. Ouvir, que é, em muitos momentos, uma atitude muito mais importante do que falar, está fora de cogitação quando se tem medo.

Olha só essa frase! (Nada de ficar achando que o Brasil é um país cordial. Só o número de assassinatos de gays, lésbicas e pessoas trans, além dos casos de feminicídio já desconstroem o paranauê. Se colocar na conta o assassinato da população preta e pobre, dos indígenas, dos que lutam pela reforma agrária... gente, o horror.)

O Brasil nada carnavalesco e muito violento é ocultado, mas vem à tona quando se trata de usar o medo como fomento da segurança a ser vendida.

Não lembra as loucas falando que querem ‘oh-meu-deus-transformar-nossas-crianças-em-viados’? Peloamor.

Tem uma coisa importante. Todo mundo tem medo. Só que nem todo mundo saí por aí espalhando o ódio e querendo acabar com o que é diferente. Não dá pra tirar a responsabilidade de quem faz isso. É importante entender, porque entender facilita a busca por uma solução. Mas não vamos confundir as bolas porque:

O fascismo cancela, em nível do discurso exposto nas mídias, nos púlpitos e palanques que constroem opiniões públicas e mentalidades coletivas, a chance de pensar no que estamos fazendo uns com os outros, reflexão que poderia nos levar a uma vida mais digna e prazerosa.

Precisamos nos perguntar por que algumas pessoas entram nessa e outras não.

Alguém que tente dialogar de verdade com uma pessoa que vive para disseminar o ódio e a violência (seja por medo ou por qualquer outro motivo) tem a minha admiração. Eu ainda não consigo.

Para quem quiser saber mais sobre o livro e sobre a Marcia Tiburi, tem uma entrevista dela no blog da editora Record, que publicou o livro, você pode acessá-la clicando aqui: