Harry Potter foi um fenômeno mundial, sua autora ficou
bilionária e durante muito tempo parecia que todo mundo só falava sobre isso,
uns bem, outros mal, mas não deixavam de falar. Eu tinha assistido aos filmes,
mas não tinha muito interesse em fazer mais que isso. Minha irmã, que é fã de
carteirinha, ficava insistindo para eu ler e depois de algum tempo, acabei
cedendo. Harry Potter então se tornou um dos meus livros favoritos, eu fiquei
maravilhada com o universo fantástico criado pela JK Rowling.
Não é a toa que Harry Potter alcançou um sucesso sem
precedentes: é uma série inteligente, com um universo próprio bem elaborado,
mistérios, romance, personagens interessantes. Uma das coisas mais legais do
livro é que as personagens cresceram com os leitores. O primeiro volume é mais
inocente e bonitinho, mas conforme a história vai evoluindo tudo fica mais
complexo e sombrio, sem perder o encanto do início. Muita gente cresceu com os
três aprendizes de bruxo e por isso, sente um carinho especial pelas histórias.
Uma das maiores qualidades da série são suas personagens
bem construídas, complexas e verdadeiras. É tão comum encontrar personagens que
se reduzem a caricaturas: a garota inteligente, o menino nerd, o engraçado, o
bully, etc, mas JK Rowling conseguiu elevar suas criações acima disso e criar
personalidades, que apesar de facilmente identificáveis (por exemplo, Hermione
é a garota inteligente e Draco é o bully) vão muito além do que se poderia
chamar de suas características principais, muitas vezes são inconsistentes,
(assim como as pessoas da vida real) não são meros estereótipos, mas sim
personalidades completas, que surpreendem o leitor quando fogem do
comportamento esperado. Um bom exemplo disso ocorre no sétimo livro quando
Neville, percebido como covarde, tímido e passivo toma a frente da ação na
escola e se torna um exemplo de rebeldia contra um sistema tirano. Outro
exemplo são as inúmeras vezes em que Hermione, a garota certinha que quer fazer
tudo de acordo com as regras, quebra essas mesmas regras para atingir seus
objetivos.
Dumbledore, Draco Malfoy e Professor Snape também precisam
ser lembrados. O primeiro, que durante quase toda a história possuía aquela
aura quase mística de espírito superior, tem a reputação abalada pela
publicação de sua biografia. O professor visto como sábio, bondoso e bem
humorado aparece sob uma nova luz quando erros de seu passado são revelados. No
sétimo livro as inseguranças e dúvidas de alguém que parecia saber de tudo são
reveladas, mostrando um lado vulnerável e falho daquele que parecia ser
perfeito.
Draco Malfoy se desenvolve muito e passa do antagonista de
um livro infantil para um adolescente cheio de angústias, preso a uma realidade
da qual não consegue escapar, mas a qual obviamente não quer pertencer. Draco
passou a vida inteira ouvindo que era superior por ser um Sangue-Puro e parece ter
herdado a arrogância dos pais, mas quando percebe as conseqüências que esse
tipo de ideologia pode ter, começa a questionar esses valores. Apesar de não
ser tratada abertamente, a transformação de Malfoy é indicada sutilmente
através de várias atitudes tomadas pelo garoto, principalmente nos sexto e
sétimo livros.
E por fim, Professor Snape, que poderia ter sido um simples
vilão que engana a todos menos ao herói, mas que tem na verdade a história mais
complexa e profunda da série. Quem reler os livros depois de desvendar todos os
mistérios envolvendo o Professor mais temido pelos alunos de Hogwarts verá um
novo significado em cada palavra e ato da personagem mais perturbada do
universo de Harry Potter.
Apesar do cenário de fantasia, Harry Potter trata de
assuntos muito próximos ao nosso dia-a-dia, o preconceito é um tema sempre
presente: os Sangue Puro se sentem superiores aos sangue-ruim ou Muggleborns, a
população bruxa em geral se sente superior aos Trouxas e às outras criaturas
mágicas. Essas tensões podem ser facilmente transpostas para nossa sociedade,
na qual encontramos diariamente exemplos de racismo, misoginismo, homofobia e
xenofobia.
Os problemas de aceitação do diferente se intensificam
quando Voldemort volta ao poder. A hierarquia entre as classes fica mais clara
e a perseguição a tudo que não é o padrão estabelecido é descarada. Aliás, o
papel da repressão e do medo na perpetuação desses preconceitos fica evidente:
muita gente não concorda com o que está acontecendo, mas tem medo de se expor,
então acaba escolhendo o silencio.
Voldemort instaura uma ditadura, pessoas são torturadas e
desaparecem, jornais são censurados e instituições de ensino perdem sua
autonomia. E esse ambiente de terror e opressão é criado quase que num piscar
de olhos. Tudo isso ecoa a situação vivida em vários países da America Latina,
Oriente Médio e outros no decorrer do século XX e também do XXI. Nessa série
infanto-juvenil põem-se em discussão questões importantíssimas e muito reais:
como é fácil passar de uma sociedade democrática para uma autoritária se não
prestarmos constante atenção aos sinais. (Lembra que ninguém queria aceitar que
Voldemort havia voltado, mesmo com todas as evidencias?) Se não nos mantivermos
atentos ao mundo a nossa volta, isso pode mesmo acontecer. Vale lembrar que o
jornal O Estadão foi censurado e está proibido de publicar notícias sobre a
família Sarney. Isso na Republica Federativa do Brasil, um país democrático que
supostamente respeita a liberdade de imprensa!!
A lição da série, porém, é de que precisamos nos mexer para
que as coisas mudem, algumas pessoas se organizam e decidem lutar pelos seus
ideais. E depois de muitas dificuldades e perdas (porque o combate à violência,
à opressão e ao preconceito não é fácil) conseguem triunfar.
Sim, Harry Potter trata de questões muito sérias das quais
não deveríamos nos esquecer nunca, mas também há um lado mais leve nesse
universo. Boa parte dos livros é usada para descrever o dia-a-dia da vida na
escola: a preocupação com as provas, as conversas entre amigos, a rivalidade
entre as casas. O humor sutil presente em todos os sete volumes mesclado a
temas e situações sérias torna a série muito mais interessante, divertida e
acessível aos leitores.
Essa combinação muito bem feita de histórias de desenvolvimento
pessoal intricadas com questões relevantes à vida em sociedade faz dessa série
uma das melhores escritas nos últimos anos, que merece todo o sucesso que
obteve e que mora no coração de milhões de pessoas espalhadas pelo planeta.
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