Lorena ouvira de vários médicos que seria quase impossível engravidar, mas isso não a impediria. Tinha certeza que a culpa era do marido, Afrânio. Sentia todo o seu ser vibrar com a possibilidade de uma vida crescendo dentro de si e por causa do material defeituoso de seu cônjuge nada acontecia.
Após tentarem os tratamentos mais caros, fazerem sexo no exato horário e posição recomendados por dois anos e tentarem até a simpatia da cenoura, Lorena teve a certeza de suas suspeitas, Afrânio não servia para nada. Casara-se mais ou menos apaixonada, ele não era bonito, não era inteligente ou particularmente agradável, mas era rico, estável e mais ou menos carinhoso. Contraíram matrimônio seis meses após o primeiro encontro e Afrânio a mimava com todos os lugares comuns, mas um filho não, aquele inútil não poderia lhe dar. Só sabia ficar em frente à TV, comendo porcarias. Balas, salgadinhos, refrigerantes, biscoitos recheados de morango, chocolates com avelã, com castanhas, bombons de licor, de amarula, de doce de leite. Uma nojeira.
Lorena não era mulher de se lamentar, perseguia seus objetivos. Matriculou-se em uma academia, queria uma criança bonita e saudável. Após algumas semanas de observação, encontrou seu doador. Maxilar quadrado, ombros largos, dentes perfeitos e sorriso delicado. Burro, provavelmente, mas devido à urgência de sua necessidade, teve que se contentar.
Engravidou como deveria, não tinha sido feita para frustrações. Foi um parto difícil, mesmo que planejado, e Lorena teve que esperar mais do que gostaria para as plásticas restauradoras de beleza e juventude. Chamou sua filha Anastácia, um nome tão grandioso quanto os planos que sonhava para seu bebê. Ao vê-la pela primeira vez achou que tinha saído à família do pai, mas se acalmou, pois para tudo havia solução, pensou acariciando o nariz. As orelhas, os seios e o queixo. Lembrou-se que precisava de uma sessão de botox.
Ainda no hospital frustrava-se quando as visitas chamavam os pés e mãos de Anastácia de paezinhos. Achava tudo aquilo de mau tom, já havia identificado o problema, olhava triste as dobras nos braços e pernas da filha, tão jovem e já defeituosa.
Assim que saiu, traçou um plano de ação. Lorena teria uma filha independente e autossuficiente, determinada e capaz como ela própria. Antes de completar um ano, Anastácia já tinha a agenda cheia. Fazia natação, balé e participava de rodas de contação de história. Quando aprendeu a falar, Lorena arranjou a melhor escola de inglês para sua princesa. Aos quatro, a menina começou a estudar o francês. Uma mãe sempre quer e sabe o que é melhor para seus filhos e Lorena não poupava esforços na construção da criança ideal. Mesmo assim, Lorena preocupava-se e indagava se além de feia, Anastácia seria também burra. A menina não ia bem nas aulas de matemática.
Aos oito anos, Anastácia era normal e Lorena perdia noites de sono imaginando o que poderia ter feito de diferente. Ainda não criara o vínculo especial de que todos falam, mas tinha certeza de que quando a menina se tornasse aquilo que nascera para ser, teria orgulho de chamá-la sua. Dobrou esforços e cursos para melhorá-la.
Ao encontrar uma colega de faculdade no shopping, viu-se apresentando Anastácia como Jéssica, filha da empregada. Gostou muito dos elogios que recebeu sobre seu bom coração, mas foi só em casa que entendeu a origem de tudo. Anastácia de fato era feia, isso Lorena há muito sabia, até fizera uma poupança especial para as plásticas da filha, mas o que agora percebia boquiaberta era que Anastácia, além de feia, era gorda. Gorda. Tinha uma filha gorda. Meu Deus, assustava-se ante tamanha provação.
Ter uma filha gorda era inadmissível. Marcou logo consultas com pediatras, endocrinologistas, nutricionistas e esteticistas. O primeiro médico tentou acalmá-la, dizendo que não havia nada de errado com a menina. Idiota, uma mãe sempre sabe e Lorena não se deu por vencida. Depois de alguma procura, estabeleceu um grupo de profissionais aptos a resolverem a questão.
Anastácia passou a seguir um programa de reeducação alimentar muito rígido e saudável. Na casa da família não entrava nada que não fosse orgânico e integral, muito menos algo que contivesse açúcar na fórmula. Lorena entrou em contato com a escola e proibiu que fornecessem qualquer tipo de alimento a sua filha, tudo que ela precisava viria de casa. A menina também passou a praticar mais esportes, além da natação e do balé, começou a fazer ioga e a exercitar-se diariamente com um personal trainer especializado em obesidade.
Ao ouvir a filha dizer que sentia fome depois de um prato de salada sem molho e um pedaço de 50 gramas de peixe, Lorena enfureceu-se. Se ela controlava a alimentação para perder apenas alguns quilos, porque aquela menina, tão gorda, não podia fazer esse pequeno esforço? Lorena queria uma filha inteligente, magra e linda. Só assim poderiam ser felizes, deixou a menina de castigo. Ao observar a garota em prantos, teve vontade de abraçá-la. Pior, teve vontade de levá-la ao McDonalds! Mas o amor de mãe falou mais alto e mesmo com um pouco de pena, ela não fraquejou em sua missão.
Afrânio confrontou a esposa após assistir a um treino da filha. Dissera que aquilo era um exagero, que não havia nada de errado com a garota, que ela era apenas uma criança. Lorena apoiou as mãos na mesa de canto com tamanho vigor que a caixa de Cristal Tiffany em formato de coração que adornava a sala quicou e partiu-se. Ela queria o melhor para sua Anastácia e não podia admitir que ninguém interferisse no sucesso de sua empreitada. Naquela noite, depois da briga e de quase um ano de inatividade, fizeram sexo e Afrânio parou de reclamar.
No primeiro retorno ao nutricionista, Anastácia tinha engordado 3 quilos e ganhado 6 centímetros de circunferência abdominal. O desespero tomou conta de Lorena. Ela trocou toda a equipe médica, enfureceu-se com a funcionária da lanchonete da escola e vasculhou o quarto da filha. Não podia entender, olhava a menina com desprezo. Amava-a, claro que sim, afinal era sua filha, nada mais natural, mas não aceitava o fato de que produzira um ser tão comum e gordo. Não, não era mulher de se entregar. Não se entregaria, teria a filha que sabia merecer.
Teve uma ideia genial e ordenou que a empregada, depois de procurar qualquer pista de transgressão pela casa, fosse à escola pesquisar o que se passava ali. Descobriu que Anastácia andava roubando o lanche das coleguinhas, todas magras, e quase perdeu a elegância. Não fosse sua boa criação, não sabe o que teria acontecido naquele dia. Foi até o quarto da filha para educa-la. A menina começou a chorar ainda na mesa, em cima dos cadernos. Continuou enquanto fazia uma hora extra na esteira, enquanto tomava banho, enquanto passava os cosméticos estabelecidos pela mãe e ainda durante toda a noite. Lorena mais uma vez teve ímpetos de consolar a filha, mas não gostava de pessoas fracas, sabia que o mundo não tinha sido feito para elas e não permitiria que Anastácia fosse assim. Ela enxergava a chantagem barata da filha, era uma mulher inteligente, aquela criança não a enganaria, não abalaria sua vontade de ferro. Tudo por amor.
Ainda muito determinada, sentia-se sem opções. Tentara recompensar o esforço da menina com brinquedos, não adiantara. Tentara tirar os brinquedos da casa, prometendo devolvê-los quando ela estivesse saudável, também não adiantara. Oferecera diversos tratamentos estéticos como prêmio pelo sucesso. Até dinheiro ofereceu, em seu desespero de mãe. Anastácia só pensava em comer. Pedia insistentemente. No início queria doces. Agora, bem pior, pedia com lágrimas nos olhos um simples pedaço de pão. Onde já se viu? Era uma situação muito perigosa e de difícil solução e Lorena salvaria a filha, ela querendo ou não.
Precisava de tempo para pensar. Não muito, pois sua vida estava em jogo, o assunto teria que ser revolvido com a mais extrema urgência. Decidiu passar um dia num spa muito tranquilo e luxuoso. O ambiente propício a ajudaria a encontrar uma resposta para sua grande crise existencial. Planejou tudo, deixou instruções com Afrânio para que Anastácia cumprisse de forma satisfatória sua agenda e dieta.
Pouco antes de sair da cidade rumo ao interior notou que estava sem carteira. Lorena pensou quão grave era a situação que vivia. Ela, sempre tão atenta, tão presente no mundo, tão lúcida cometer uma falha tão banal. Voltou para casa preocupada consigo. Ao entrar na sala, seus olhos. Afrânio e Anastácia sorriam e devoravam juntos um enorme saco de pipoca doce coberta com chocolate.
Pouco antes de sair da cidade rumo ao interior notou que estava sem carteira. Lorena pensou quão grave era a situação que vivia. Ela, sempre tão atenta, tão presente no mundo, tão lúcida cometer uma falha tão banal. Voltou para casa preocupada consigo. Ao entrar na sala, seus olhos. Afrânio e Anastácia sorriam e devoravam juntos um enorme saco de pipoca doce coberta com chocolate.
Bom desfecho!
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