Gosto muito de
bichos. Sou dessas que, nos filmes, chora mais quando o cachorro morre. É uma
coisa comum até. Algo que eu fico tentando entender... por que tanta gente se
sensibiliza com o sofrimento dos bichinhos, mas fica alheia ao sofrimento dos
seres humanos? Não é todo mundo, claro. Também tem muita gente que não está nem
aí para os animais... Tem gente que não liga pra ninguém (será?)... Enfim, tem
todo o tipo de gente.
A compaixão em
relação aos animais e não em relação às pessoas me inquieta mais. Falta de compaixão
generalizada é horrível, mas coerente. Falta de compaixão para com animais tem
uma explicação (muito da ruim, mas que muita gente compra): não são gente – é
como se fossem coisa. Entendo as pessoas que se desiludiram com a humanidade e “preferem
bichos”, mas ter compaixão seletiva me confunde. Não tenho resposta pra isso,
ainda não consegui entender.
Só que quando comecei
a ler Entre rinhas de cachorros e
porcos abatidos, da Ana Paula Maia, publicado pela editora Record, foi isso o que aconteceu. Fiquei com dó dos bichos. Fiquei com
dó dos bichos-porcos e dos bichos-cachorros e não fiquei com dó dos
bichos-homens.
A narrativa começa com um porco sendo
abatido. O protagonista, Edgar Wilson, quer sair logo do abatedouro em que
trabalha porque é dia de rinha de cachorros e ele quer fazer sua aposta em
Chacal, um cão enjeitado pelo demo. O porco tenta fugir, esperneia e urra
enquanto Edgar Wilson e Pedro conversam, fumam e abatem o bicho. É tudo muito
cotidiano, o que torna a cena ainda mais pavorosa. Ela lembra um pouco
suspenses com serial killers: há uma vítima aterrorizada implorando pela vida
enquanto o assassino ouve música ou realiza qualquer tarefa de forma serena e
sem preocupações. A morte é apenas mais uma das tarefas do dia.
Fiquei tão concentrada na ênfase dada
à dor e à miséria dos animais (será que é isso mesmo ou foi meu preconceito que leu assim?) que me esqueci da miséria banalizada da vida dos
homens. O horror está por todos os lados, e não há como fugir:
“Cão de rinha é um cão que não teve
escolha. Ele aprendeu desde pequeno o que o seu dono ensinou. Podem ser
reconhecidos pelas orelhas curtas ou amputadas e pelas cicatrizes, pontos e
lacerações. Não tiveram escolhas. Exatamente como Edgar Wilson, que foi
adestrado desde muito pequeno, matando coelhos e rãs. Que carrega algumas
cicatrizes pelos braços, pescoço e peito. São tantos riscos e suturas na pele
que não se lembra onde conseguiu a metade. Porém a marca da violência e resistência
à morte de outros animais nunca tiraram o brilho de seus olhos quando contempla
um céu amplo. Dia ou noite, ele passa boa parte do seu tempo olhando para cima.
Quem sabe espera que alguma coisa aconteça no céu ou com o céu... talvez queira
retalhar algumas nuvens com seu facão.”
Esse parágrafo me marcou bastante.
Quando comecei a lê-lo imaginei que a analogia entre cão e homem, muito óbvia
nesse ponto da narrativa, ficaria a cargo do leitor, mas a narração continua,
seguindo o estilo de escrita que segue as personagens na falta de construção de
significado (muitas aspas aqui). O fim do parágrafo mata a possibilidade de
qualquer poética, indicada pelo imaginário literário de “olhar para o céu”, com
a frase terrivelmente maravilhosa “talvez queira retalhar algumas nuvens com
seu facão” – nos lembrando que violência e morte é só o que existe no mundo
desses seres.
Demorou pra cair a ficha. Fiquei boa
parte do livro horrorizada pelo tratamento terrível conferido aos animais e
completamente alheia ao tratamento terrível conferido aos homens.
Não quero dar spoilers. No fundo,
quero muito dar spoilers e contar várias cenas absurdas e algumas muitíssimo engraçadas da
história, mas não vou. Seria sacanagem.
No site da Ana Paula Maia tem o
início do livro. Vou colocar um trecho aqui:
"E o teu rim? Eu tô falando do
bom, daquele que tá lá com a tua irmã."
"Acho que vai bem."
"Você não pensa em pegar de
volta. Quer dizer, quando você deu pra ela, não estava precisando, ele não te
fazia falta, mas agora é diferente."
"É, eu sei. Parece que ela tá
com câncer."
"Então, ela não vai precisar
dele por muito tempo."
"Acho que não. Escuta, eu deixei
aquele vídeo do Chuck Norris na sua casa?"
"Braddock?"
"O resgate."
"Só estou com o Braddock II. O
resgate, esse não tá não."
"Acho que perdi meu vídeo. É um
desfalque e tanto na minha coleção."
Silêncio.
"Você vai deixar seu rim jovem e
saudável ser comido pelo câncer da tua irmã?"
"Parece que ela vai começar a
fazer aquele troço que deixa careca."
"Sei... então a radiação vai
matar o teu rim."
"Você acha mesmo?"
"Acho que o teu rim já
era."
Essa história do rim se desenrola,
vou logo avisando. O livro me lembrou um pouco de Vidas Secas. É uma
mistura de Graciliano Ramos com Tarantino. Há características comuns da
contemporaneidade na obra – violência é figurinha carimbada. Mais que violência,
violência banalizada, violência do dia a dia, violência estrutural. “Violência
absurda ali do lado e tudo bem”. Isso tem de sobra no livro de Ana Paula Maia.
A questão da crueldade contra os
animais e do paralelo com a crueldade contra os seres humanos pode levar à
reflexão das pessoas, das que só se importam com uns, das que só se importam
com outros e, quem sabe, das que não se importam com nenhum, se é que elas
existem mesmo. Quanto a isso, vou deixar uma frase e o link de um texto da Marcia
Tuburi sobre “De Gados e Homens”, também de Ana Paula Maia, para a revista
Cult, já que ela falou muito melhor do que eu poderia.
“Sabemos pouco sobre
frigoríficos. Quem vê a mera carne em seu prato não pensa no sofrimento dos
animais. Quem pensa no sofrimento dos animais nem sempre lembra da miséria dos
homens.”
Elas não disseram tudo? (Tanto?) O que falta pra gente entender?
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