segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Os porcos somos nós – Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos de Ana Paula Maia



Gosto muito de bichos. Sou dessas que, nos filmes, chora mais quando o cachorro morre. É uma coisa comum até. Algo que eu fico tentando entender... por que tanta gente se sensibiliza com o sofrimento dos bichinhos, mas fica alheia ao sofrimento dos seres humanos? Não é todo mundo, claro. Também tem muita gente que não está nem aí para os animais... Tem gente que não liga pra ninguém (será?)... Enfim, tem todo o tipo de gente.

A compaixão em relação aos animais e não em relação às pessoas me inquieta mais. Falta de compaixão generalizada é horrível, mas coerente. Falta de compaixão para com animais tem uma explicação (muito da ruim, mas que muita gente compra): não são gente – é como se fossem coisa. Entendo as pessoas que se desiludiram com a humanidade e “preferem bichos”, mas ter compaixão seletiva me confunde. Não tenho resposta pra isso, ainda não consegui entender.

Só que quando comecei a ler Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, da Ana Paula Maia, publicado pela editora Record, foi isso o que aconteceu. Fiquei com dó dos bichos. Fiquei com dó dos bichos-porcos e dos bichos-cachorros e não fiquei com dó dos bichos-homens.

A narrativa começa com um porco sendo abatido. O protagonista, Edgar Wilson, quer sair logo do abatedouro em que trabalha porque é dia de rinha de cachorros e ele quer fazer sua aposta em Chacal, um cão enjeitado pelo demo. O porco tenta fugir, esperneia e urra enquanto Edgar Wilson e Pedro conversam, fumam e abatem o bicho. É tudo muito cotidiano, o que torna a cena ainda mais pavorosa. Ela lembra um pouco suspenses com serial killers: há uma vítima aterrorizada implorando pela vida enquanto o assassino ouve música ou realiza qualquer tarefa de forma serena e sem preocupações. A morte é apenas mais uma das tarefas do dia.

Fiquei tão concentrada na ênfase dada à dor e à miséria dos animais (será que é isso mesmo ou foi meu preconceito que leu assim?) que me esqueci da miséria banalizada da vida dos homens. O horror está por todos os lados, e não há como fugir:

“Cão de rinha é um cão que não teve escolha. Ele aprendeu desde pequeno o que o seu dono ensinou. Podem ser reconhecidos pelas orelhas curtas ou amputadas e pelas cicatrizes, pontos e lacerações. Não tiveram escolhas. Exatamente como Edgar Wilson, que foi adestrado desde muito pequeno, matando coelhos e rãs. Que carrega algumas cicatrizes pelos braços, pescoço e peito. São tantos riscos e suturas na pele que não se lembra onde conseguiu a metade. Porém a marca da violência e resistência à morte de outros animais nunca tiraram o brilho de seus olhos quando contempla um céu amplo. Dia ou noite, ele passa boa parte do seu tempo olhando para cima. Quem sabe espera que alguma coisa aconteça no céu ou com o céu... talvez queira retalhar algumas nuvens com seu facão.”

Esse parágrafo me marcou bastante. Quando comecei a lê-lo imaginei que a analogia entre cão e homem, muito óbvia nesse ponto da narrativa, ficaria a cargo do leitor, mas a narração continua, seguindo o estilo de escrita que segue as personagens na falta de construção de significado (muitas aspas aqui). O fim do parágrafo mata a possibilidade de qualquer poética, indicada pelo imaginário literário de “olhar para o céu”, com a frase terrivelmente maravilhosa “talvez queira retalhar algumas nuvens com seu facão” – nos lembrando que violência e morte é só o que existe no mundo desses seres.

Demorou pra cair a ficha. Fiquei boa parte do livro horrorizada pelo tratamento terrível conferido aos animais e completamente alheia ao tratamento terrível conferido aos homens.

Não quero dar spoilers. No fundo, quero muito dar spoilers e contar várias cenas absurdas e algumas muitíssimo engraçadas da história, mas não vou. Seria sacanagem.

No site da Ana Paula Maia tem o início do livro. Vou colocar um trecho aqui:

"E o teu rim? Eu tô falando do bom, daquele que tá lá com a tua irmã."
"Acho que vai bem."
"Você não pensa em pegar de volta. Quer dizer, quando você deu pra ela, não estava precisando, ele não te fazia falta, mas agora é diferente."
"É, eu sei. Parece que ela tá com câncer."
"Então, ela não vai precisar dele por muito tempo."
"Acho que não. Escuta, eu deixei aquele vídeo do Chuck Norris na sua casa?"
"Braddock?"
"O resgate."
"Só estou com o Braddock II. O resgate, esse não tá não."
"Acho que perdi meu vídeo. É um desfalque e tanto na minha coleção."
Silêncio.
"Você vai deixar seu rim jovem e saudável ser comido pelo câncer da tua irmã?"
"Parece que ela vai começar a fazer aquele troço que deixa careca."
"Sei... então a radiação vai matar o teu rim."
"Você acha mesmo?"
"Acho que o teu rim já era."

Essa história do rim se desenrola, vou logo avisando. O livro me lembrou um pouco de Vidas Secas. É uma mistura de Graciliano Ramos com Tarantino. Há características comuns da contemporaneidade na obra – violência é figurinha carimbada. Mais que violência, violência banalizada, violência do dia a dia, violência estrutural. “Violência absurda ali do lado e tudo bem”. Isso tem de sobra no livro de Ana Paula Maia.

A questão da crueldade contra os animais e do paralelo com a crueldade contra os seres humanos pode levar à reflexão das pessoas, das que só se importam com uns, das que só se importam com outros e, quem sabe, das que não se importam com nenhum, se é que elas existem mesmo. Quanto a isso, vou deixar uma frase e o link de um texto da Marcia Tuburi sobre “De Gados e Homens”, também de Ana Paula Maia, para a revista Cult, já que ela falou muito melhor do que eu poderia.

“Sabemos pouco sobre frigoríficos. Quem vê a mera carne em seu prato não pensa no sofrimento dos animais. Quem pensa no sofrimento dos animais nem sempre lembra da miséria dos homens.”

Elas não disseram tudo? (Tanto?) O que falta pra gente entender?

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