domingo, 4 de janeiro de 2015

Carta a um analfabeto




por Nancy Denommee

Você me amaria se eu fosse bonita? Se meu batom fosse vermelho? Se não chorasse tanto? Se tivesse dito não? Me amaria se não requisitasse tanto o seu corpo? As suas mãos? Os seus olhos. Me amaria se não fosse por ela? 

Seus pensamentos não me procuram e minha vida tomada de você. Meu primeiro. Meu último. Todos os outros. 

Eu não te deixei entrar, eu te empurrei quando você disse não. Disse não e resistiu pouco, sorrindo. Foi como uma avalanche que inventei de tanto querer. Você entrou em todos os espaços, todos os amores, todos os desejos. Fui me partindo e te entregando cada pedaço até desmanchar-me em suas mãos. 


Eu te ofereci meus olhos e você os usou. Ofereci minhas mãos e você as usou. Te ofereci minhas palavras e você também as usou, foi ser grande em outro lugar. Quando te invadi com minha verdade, li na sua irritação a minha dor. Adiei as lágrimas que eram minhas para enxugar as suas. Você não quis o meu amor, mas nunca deixou de bebê-lo e eu, toda preenchida de você, te olhava, porque você tirou o meu vazio e o trocou por ausência, que é um sempre querer mais. 
E então você fala de amor quando quero ser pele. Quando quero amor, você fala dela. E eu sempre te escutei escondendo minhas dores, porque quero beber a sua lama. Quero todo o seu desejo em mim. Quero te invadir e te destruir porque te deixei entrar e você não sai, mas também não quer ficar. 

Pertenço tanto a você que não sei escrever essa história. Não te deixo me ler no papel, a última folha que seguro em mãos desfeitas, mas você está em todas as tintas. São manchas que eu admiro, debruçando-me sobre elas, vomitando-as, mastigando-as, transformando-as naquilo que inventei, uma história do que nunca foi. 

Um artista. Um poeta, tão talentoso que quase não enxerguei seu divertimento e sua segurança em meu desejo quando revelava tudo e me desculpava por tanto tremor. Não adiantou saber, pois o desejo é maior que tudo, maior que o amor, maior que a doença, maior que o orgulho, maior que o desejo. E eu sempre derramada, insatisfeita, querendo o você que me tomou completamente, nunca o você que diz não enquanto aperta meu corpo e não me deixa ir. 
A atuação é minha, impregnada do teu cheiro, da tua imundice anêmica, da frieza que me dá. O meu nojo cresce de desejar tanto o que é só superfície, o que não sabe me ver, o que nunca será febre, nem com ela, minha inveja me diz. 

Te quero domado e escravizado, poluído de mim para que possa finalmente me negar, mas mesmo na fantasia do não eu te desejo. Te desejo débil e vacilante, mórbido e decrépito. Desejo a sua terra marrom, escura e fria que transforma minha língua queimada em vapor. Desejo a sujeira e todo o mal que me faz quando minha lava não pode tocar a sua lama sem virar transparência. 

Então te odeio com toda a força do desejo que não me permito sentir. Não permito porque só tenho nãos, mesmo quando ouço sim, porque tudo é raso quando anseio profundidade, porque o seu desejo adormecido, feio e porco só existe para ela, porque cansei de arder e perder meus instantes no barro que renega meu fogo. 

Tomada de aversão, preencho sua ausência com fúria, rancor e ódio. Você permanece, eu te mantenho aqui, mas a raiva é minha e posso movimentá-la e inflá-la na esperança de que ela domine o desejo e ocupe seu lugar. Tudo dilata e quando estou a ponto de me reconhecer, me vejo em seus olhos e irrompo a queimar.

5 comentários:

  1. Muito bom, de verdade! Profundo e inspirador. No entanto, senti falta de um pouco de narrativa, mesmo que em segundo plano. Apesar de não ser o foco faz parecer menos abstrato. Gostei muito, vou reler! Abraço.

    ResponderExcluir
  2. Muito obrigada, Arthur! Na verdade, esse texto é um pouco diferente do que eu costumo escrever, realmente ele não tem enredo, é como se fosse um desabafo. Mas olha, nos outros tem bastante enredo se você se interessar ;)

    ResponderExcluir
  3. Senti um texto intenso, muitas imagens, tudo misturado, condensado... Me lembra aquele fluxo caótico de pensamentos quando tudo vem à tona... Mah, seus textos são incríveis, estou adorando lê-los.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. :D Obrigada, =*

      Esse é um texto diferente mesmo, fiz ele durante um curso de escrita curativa, por isso ele é mais maluco.

      Excluir
  4. Nossa, legal o texto é bem diferente! Parabéns! Não tenho o que dizer, eu simplesmente Adoreii!
    http://liihmarques.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir