domingo, 12 de julho de 2015

Pai






O problema com os monstros é que eles têm olhos que podem chorar. E são lindos. Tão lindos pra quem não aprendeu a ver. Eu cresci cercada deles e aprendi que ser boa é fazer beleza naquilo que é feio. Eu via em tudo aquilo que os outros achavam triste e perigoso o que era certo e bom. Enxergando tudo torto, confundia ter olhos que podem chorar com poder chorar, com querer chorar, com saber chorar. Então aprendi a ver e a viver pensando apenas monstros, tentando achar jeitos de ver uma lágrima cair. 

E sempre houve muita água nessa história, mas ela era toda minha. E eu, boba, achava que tudo bem, porque podia ser espelho. Eu não entendia que os monstros enxergam muito bem uma realidade e sabem usá-la e sempre a usam, mas nunca, nunca a sentem. Eu não sabia que os monstros não podiam nem queriam ver dentro da dor. Mas eles sabem toda ela de fora, toda mesmo, todas as caras e todas as cores e as usam muito bem. Usam o fingir da dor para roubar folhas do livro da vida dos outros. Não podem roubar o livro todo, porque não o enxergam. Se enxergassem roubariam tudo, mas, na verdade, se enxergassem teriam olhos que sabem chorar e escreveriam seu próprio livro com as folhas que construiriam com os olhos que sabem chorar. 

Minhas folhas estão acabando porque eu sempre escrevi muito e desenhei. Desenhei monstros com olhos que podem chorar e acreditei, porque quis acreditar, que eram olhos que sabiam chorar. Cercada por monstros e achando que eles são lindos, mas tão lindos, eu até entreguei algumas folhas, muitas folhas e eles, vendo nas mãos o que não haviam precisado roubar, me olhavam bem fundo de espanto e eu via um brilho que sempre vi como saber chorar, mas não era, não era, era só um fundo de monstro num fundo de olhos que aprendem que existem presas fáceis e descobrem o prazer de roubar não roubando, de roubar como se nem quisessem, de roubar não só a folha do livro da vida dos outros, mas a própria tinta, a letra e o desenho. Ganhar páginas cheias de cor. 

Essa descoberta que eu dei aos monstros era uma felicidade. Eles sorriam tão grande e tão largo que eu, boba de novo, achava que toda aquela iluminação vinha de olhos que sabem chorar. Porque todo mundo sabe, só olhos que sabem chorar podem ter bocas que sabem sorrir. Mas eu era boba de novo e de novo porque não via que toda aquela iluminação vinha do livro da vida dos outros. E das minhas tintas e das minhas cores. Porque eram monstros com olhos que podem chorar, mas não sabem chorar. Roubam folhas pintadas de histórias. E sabem fingir a história que não é a deles. Sabem causar a dor que só sabem enxergar de fora, porque aqueles que têm olhos que sabem chorar doem mais e sofrem mais o mundo e os monstros sabem. Eles sempre sabem. 

Mas os monstros sabem muito. Muito mesmo e usam, usam muito mesmo. Mas não sabem saber o que importa. Não sabem que no sentir da dor pode haver beleza e alegria até e que ter folhas de um livro que é só seu é a coisa mais bonita do mundo. Melhor que roubar, melhor que ver a lágrima cair, melhor que esperar que os monstros que não querem saber chorar queiram saber chorar e usem o chorar e construam suas próprias folhas do livro da vida. 

Mas os monstros, ah, os monstros não querem ter olhos que sabem chorar porque têm medo. Têm medo de chorar, medo de construir suas folhas e mais medo ainda de dizerem que são monstros. Por isso fingem a dor dos outros, fingindo que acham que fingir é o mesmo que sentir. 

E foi assim que descobri o segredo, monstros são feitos todos de medo. O medo de si e o medo dos outros e é assim que eles continuam monstros. Sendo e fazendo medo. E descobrir o segredo me fez olhar mais fundo e querer dar ainda mais folhas com mais tintas, com mais cores só pra ver se eles decidem querer aprender a chorar. Mas não adianta, o que é mais triste nos monstros é que eles escolhem continuar monstros que roubam o livro da vida dos outros. Monstros com olhos que podem chorar não querem ter olhos que sabem chorar e fogem sempre do saber. Eles têm muito, mas muito medo da dor. Da sua própria dor e só dela. E preferem continuar fazendo medo e roubando o sentir de quem já sabe a dor e por isso não quer fazer dor nos outros. 

Sabendo assim do que os monstros são feitos, eles parecem pequeninhos, quase dando vontade de rir ao mesmo tempo em que dá vontade de chorar. Mas monstros são monstros. São feitos de medo e espalham medo. E é por isso que mesmo com vontade de rir e com vontade de chorar e achando tudo pequeninho e às vezes achando tudo muito grande eu, boba que sou, comecei a tentar parar de dar folhas do livro da vida. Mas ainda sim me vejo com a mão esticada falando bem alto, querendo que todos os olhos saibam chorar, aí percebo e me encolho num canto dizendo que não, que não pode, que não quero fazer nem ajudar a fazer medo. Mas os monstros já roubaram as folhas do meu livro da vida. Porque eu entreguei tanto e por tanto tempo que não aprendi a fechar nada e o livro está sempre aberto e as folhas voando, chamando quem quiser roubar.

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