segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Jane the Virgin - uma hommage às telenovelas e ao realismo mágico

 


Jane the Virgin tem alguns defeitos, como qualquer série. Mas não quero falar deles porque o show é muito, mas muito bom.

O primeiro ponto positivo que eu destacaria é o tema central da narrativa: o relacionamento (e o amor) das mulheres Villanueva: Alba, a avó, Xiomara, a mãe e Jane, a filha. Em pleno 2021 é tão difícil encontrar séris e livros que tratam sobre mulheres que isso por si só já me atrai. E a construção desse relacionamento é magistral. Elas começam muito próximas, mas com várias questões não resolvidas que o show vai elaborando ao longo das temporadas. O arco de crescimento é muito bem feito. Acredito que a série seja sobre isso: relacionamentos entre mulheres. E aqui a gente pode colocar as personagens Lina e Petra. A última também tem um arco de crescimento fantástico.

Outra coisa que é muito legal é a homenagem às telenovelas. O fato de a série retratar mulheres latinas (muito pouco representadas) é maravilhoso. E as mulheres Villanueva são viciadas em novelas (latinoamericanas, claro). Nessa toada, também temos o pai de Jane, que é um famoso ator mexicano. Mas a homenagem não para por aí. As reviravoltas e acontecimentos absurdos são incluídos na série, fazendo dela uma paródia (é importante lembrar aqui que paródia não é tirar sarro, mas sim pegar um gênero e incorporá-lo em outro) perfeita do gênero. Quando a irmã gêmea perdida de Petra surge, foi impossível não lembrar de Paola e Paulina, a gêmea boa e a gêmea má, da novela A usurpadora, que foi um sucesso aqui no Brasil. O absurdo dos acontecimentos não caberia em uma série americana comum, mas o universo de Jane the Virgin permite que eles ocorram naturalmente.

O último ponto é o realismo mágico, uma das criações mais belas da literatuara, que surgiu na América Latina. Quando Jane (e outras personagens) sentem amor, o coração dela brilha. Quando recebe flores, elas desabrocham em suas mãos. Quando beija Michael, ela volta flutuando para casa. Quando beija Rafael, pétalas de flores começam a cair ao redor deles. Isso sem contar o fato de Jane conversar com as personagens de seus livros, que ganham vida e aparecem como pessoas de carne e osso em sua frente, ou o fato de estátuas e ursinhos de pelúcia falarem. Também há a briga no ringue entre Jane e Petra e a cena mediaval com Jane e Michael. O uso do mágico funciona, de novo, porque o universo da série permite que esses elementos sejam incorporados.

Jane the Virgen é um deleite. Recomendo muitíssimo.


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segunda-feira, 8 de novembro de 2021

O fenômeno Harry Potter



Harry Potter foi um fenômeno mundial, sua autora ficou bilionária e durante muito tempo parecia que todo mundo só falava sobre isso, uns bem, outros mal, mas não deixavam de falar. Eu tinha assistido aos filmes, mas não tinha muito interesse em fazer mais que isso.  Minha irmã, que é fã de carteirinha, ficava insistindo para eu ler e depois de algum tempo, acabei cedendo. Harry Potter então se tornou um dos meus livros favoritos, eu fiquei maravilhada com o universo fantástico criado pela JK Rowling.

Não é a toa que Harry Potter alcançou um sucesso sem precedentes: é uma série inteligente, com um universo próprio bem elaborado, mistérios, romance, personagens interessantes. Uma das coisas mais legais do livro é que as personagens cresceram com os leitores. O primeiro volume é mais inocente e bonitinho, mas conforme a história vai evoluindo tudo fica mais complexo e sombrio, sem perder o encanto do início. Muita gente cresceu com os três aprendizes de bruxo e por isso, sente um carinho especial pelas histórias.

Uma das maiores qualidades da série são suas personagens bem construídas, complexas e verdadeiras. É tão comum encontrar personagens que se reduzem a caricaturas: a garota inteligente, o menino nerd, o engraçado, o bully, etc, mas JK Rowling conseguiu elevar suas criações acima disso e criar personalidades, que apesar de facilmente identificáveis (por exemplo, Hermione é a garota inteligente e Draco é o bully) vão muito além do que se poderia chamar de suas características principais, muitas vezes são inconsistentes, (assim como as pessoas da vida real) não são meros estereótipos, mas sim personalidades completas, que surpreendem o leitor quando fogem do comportamento esperado. Um bom exemplo disso ocorre no sétimo livro quando Neville, percebido como covarde, tímido e passivo toma a frente da ação na escola e se torna um exemplo de rebeldia contra um sistema tirano. Outro exemplo são as inúmeras vezes em que Hermione, a garota certinha que quer fazer tudo de acordo com as regras, quebra essas mesmas regras para atingir seus objetivos.

Dumbledore, Draco Malfoy e Professor Snape também precisam ser lembrados. O primeiro, que durante quase toda a história possuía aquela aura quase mística de espírito superior, tem a reputação abalada pela publicação de sua biografia. O professor visto como sábio, bondoso e bem humorado aparece sob uma nova luz quando erros de seu passado são revelados. No sétimo livro as inseguranças e dúvidas de alguém que parecia saber de tudo são reveladas, mostrando um lado vulnerável e falho daquele que parecia ser perfeito.

Draco Malfoy se desenvolve muito e passa do antagonista de um livro infantil para um adolescente cheio de angústias, preso a uma realidade da qual não consegue escapar, mas a qual obviamente não quer pertencer. Draco passou a vida inteira ouvindo que era superior por ser um Sangue-Puro e parece ter herdado a arrogância dos pais, mas quando percebe as conseqüências que esse tipo de ideologia pode ter, começa a questionar esses valores. Apesar de não ser tratada abertamente, a transformação de Malfoy é indicada sutilmente através de várias atitudes tomadas pelo garoto, principalmente nos sexto e sétimo livros.

E por fim, Professor Snape, que poderia ter sido um simples vilão que engana a todos menos ao herói, mas que tem na verdade a história mais complexa e profunda da série. Quem reler os livros depois de desvendar todos os mistérios envolvendo o Professor mais temido pelos alunos de Hogwarts verá um novo significado em cada palavra e ato da personagem mais perturbada do universo de Harry Potter.

Apesar do cenário de fantasia, Harry Potter trata de assuntos muito próximos ao nosso dia-a-dia, o preconceito é um tema sempre presente: os Sangue Puro se sentem superiores aos sangue-ruim ou Muggleborns, a população bruxa em geral se sente superior aos Trouxas e às outras criaturas mágicas. Essas tensões podem ser facilmente transpostas para nossa sociedade, na qual encontramos diariamente exemplos de racismo, misoginismo, homofobia e xenofobia.

Os problemas de aceitação do diferente se intensificam quando Voldemort volta ao poder. A hierarquia entre as classes fica mais clara e a perseguição a tudo que não é o padrão estabelecido é descarada. Aliás, o papel da repressão e do medo na perpetuação desses preconceitos fica evidente: muita gente não concorda com o que está acontecendo, mas tem medo de se expor, então acaba escolhendo o silencio.

Voldemort instaura uma ditadura, pessoas são torturadas e desaparecem, jornais são censurados e instituições de ensino perdem sua autonomia. E esse ambiente de terror e opressão é criado quase que num piscar de olhos. Tudo isso ecoa a situação vivida em vários países da America Latina, Oriente Médio e outros no decorrer do século XX e também do XXI. Nessa série infanto-juvenil põem-se em discussão questões importantíssimas e muito reais: como é fácil passar de uma sociedade democrática para uma autoritária se não prestarmos constante atenção aos sinais. (Lembra que ninguém queria aceitar que Voldemort havia voltado, mesmo com todas as evidencias?) Se não nos mantivermos atentos ao mundo a nossa volta, isso pode mesmo acontecer. Vale lembrar que o jornal O Estadão foi censurado e está proibido de publicar notícias sobre a família Sarney. Isso na Republica Federativa do Brasil, um país democrático que supostamente respeita a liberdade de imprensa!!

A lição da série, porém, é de que precisamos nos mexer para que as coisas mudem, algumas pessoas se organizam e decidem lutar pelos seus ideais. E depois de muitas dificuldades e perdas (porque o combate à violência, à opressão e ao preconceito não é fácil) conseguem triunfar.

Sim, Harry Potter trata de questões muito sérias das quais não deveríamos nos esquecer nunca, mas também há um lado mais leve nesse universo. Boa parte dos livros é usada para descrever o dia-a-dia da vida na escola: a preocupação com as provas, as conversas entre amigos, a rivalidade entre as casas. O humor sutil presente em todos os sete volumes mesclado a temas e situações sérias torna a série muito mais interessante, divertida e acessível aos leitores.

Essa combinação muito bem feita de histórias de desenvolvimento pessoal intricadas com questões relevantes à vida em sociedade faz dessa série uma das melhores escritas nos últimos anos, que merece todo o sucesso que obteve e que mora no coração de milhões de pessoas espalhadas pelo planeta.

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segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Me Gritaron Negra - Victoria Santa Cruz

Poema fenomenal!


Tenía siete años apenas,
apenas siete años,
¡Que siete años!
¡No llegaba a cinco siquiera!

De pronto unas voces en la calle
me gritaron ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!

“¿Soy acaso negra?” – me dije ¡SÍ!
“¿Qué cosa es ser negra?” ¡Negra!
Y yo no sabía la triste verdad que aquello escondía. Negra!
Y me sentí negra, ¡Negra! 
Como ellos decían ¡Negra! 
Y retrocedí ¡Negra!
Como ellos querían ¡Negra!
Y odié mis cabellos y mis labios gruesos
y miré apenada mi carne tostada
Y retrocedí ¡Negra!
Y retrocedí…
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Neeegra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!

Y pasaba el tiempo,
y siempre amargada
Seguía llevando a mi espalda
mi pesada carga

¡Y cómo pesaba! …
Me alacié el cabello,
me polveé la cara,
y entre mis cabellos siempre resonaba
la misma palabra
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Neeegra! 
Hasta que un día que retrocedía,
retrocedía y que iba a caer
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! 
¿Y qué?

¿Y qué? ¡Negra! 
Sí ¡Negra! 
Soy ¡Negra!
Negra ¡Negra! 
Negra soy

¡Negra! Sí
¡Negra! Soy
¡Negra! Negra
¡Negra! Negra soy
De hoy en adelante no quiero
laciar mi cabello
No quiero
Y voy a reírme de aquellos,
que por evitar – según ellos –
que por evitarnos algún sinsabor
Llaman a los negros gente de color
¡Y de qué color! NEGRO
¡Y qué lindo suena! NEGRO 
¡Y qué ritmo tiene! 
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO 
Al fin
Al fin comprendí AL FIN 
Ya no retrocedo AL FIN 
Y avanzo segura AL FIN 
Avanzo y espero AL FIN
Y bendigo al cielo porque quiso Dios
que negro azabache fuese mi color
Y ya comprendí AL FIN 
Ya tengo la llave 
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO 
¡Negra soy!


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segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Is everyone hanging out without me e a adorável Mindy Kaling


Eu já conhecia a Mindy Kaling por causa do The Office, série na qual ela interpretou a personagem Kelly Kapoor, além de escrever, produzir e dirigir vários episódios. Também já tinha ouvido dizer que sua personagem era meio que uma versão exagerada da atriz. Só pelo fato de ela ser uma das mentes brilhantes por trás desse programa, eu já simpatizava com Kaling, mas o que me fez decidir comprar Is Everyone Hanging Out Without Me? foi um trecho do livro que eu li em algum site, que discorria sobre a situação da comédia romântica na atualidade. 

Is Everyone Hanging Out Without Me? é uma leitura bastante fácil, seu tom casual dá a impressão de que a autora está simplesmente falando ao telefone com uma amiga. Não sou muito fã de biografias ou autobiografias, mas o livro de Mindy Kaling se aproxima mais de uma coletânea de colunas soltas de um jornal, revista ou mais acertadamente de um blog sobre cultura pop. A própria autora entende perfeitamente a vibe de seu livro diz: 

“Você só vai levar dois dias para ler esse livro. Você viu a capa? É praticamente toda rosa. Se você estiver lendo esse livro todas as noites, por meses, algo está errado.” 

Realmente “Is Everyone Hanging Out Without Me?” é uma leitura fácil, mas isso não é um demérito e Mindy Kaling atinge seus objetivos, eu acredito que o livro seja exatamente o que ela quis que ele fosse. Os temas abordados são bastante variados. Realmente variados. Vou citar os nomes de alguns capítulos: 

Etiqueta de Karaokê; 

Os direitos e responsabilidades de melhores amigas; 

Tipos de Mulheres em Comédias Românticas que não são reais; 

O dia que eu parei de comer cupcakes; 

Instruções precisas para o meu funeral. 

Apesar de cheio de partes sobre romance, comédias românticas e afins, Is Everyone Hanging Out Without Me? também é cheio de sororidade e feminismo. Um dos melhores momentos do livro é aquele em que Mindy fala sobre como Amy Poehler é incrivelmente incrível, coisa que eu já suspeitava. Mas falando sobre feminismo, há alguns trechos interessantes: 

Porque você não falou sobre se mulheres são engraçadas ou não? 

Eu só senti que comunicando isso de algum modo, seria uma aprovação tácita disso como um debate legítimo, o que não é. Seria o mesmo que falar sobre o assunto: “Gatos e cachorros deveriam poder cuidar de crianças? Eles já estão na casa mesmo.” Eu tento não discutir seriamente assuntos sem sentido.

O melhor de tudo são os insights sobre comédias românticas, que demonstram a percepção de como a indústria do cinema pode ser absurda em relação à representação feminina: 

A mãe de 42 anos do protagonista de 30: Eu estou tão acostumada ao fenômeno da mãe jovem, que quando eu vi o pôster de A Proposta, eu imaginei por um segundo se a proposta do filme seria Ryan Reynolds sugerindo mandar sua mãe, Sandra Bullock, para um asilo." 

Eu simplesmente considero comédias românticas um subgênero de ficção cientifica, na qual o mundo criado tem regras diferentes das do meu mundo humano normal.

Pra mim, esse é a perfeita definição do que sejam comédias românticas! Mindy Kaling é genial! O estilo e a personalidade da autora são facilmente reconhecíveis em Is Everyone Hanging Out Without Me? e isso faz com que seu livro seja muito acessível. Acho que já dei muitos spoilers, mas só para terminar vou dizer que é impossível não gostar de um livro escrito por uma mulher inteligente e engraçadíssima, cheio de menções à cultura pop, Jane Austen e Colin Firth. É uma ótima leitura para qualquer um que goste de rir!

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

E Luana estava aqui

 Luana achava que era Jesus Cristo. Não, não era como aquele cara estranho que faz versões das músicas da Amy e da Britney. Não era como ele. Era como se tivesse nascido com vocação pra Madre Teresa de Calcutá. Só que não tinha.


Luana nasceu na miséria e cresceu na miséria. Assim, sempre buscou a miséria. Nesse mundo, encontrou-a em abundancia. E continuou acreditando apenas nela.

segunda-feira, 26 de julho de 2021

História do amor

 Eu fui estuprada e tudo ocorreu como deveria. Ele estava por cima e pediu que eu abrisse as pernas e eu abri. Mais, ele disse. E eu abri mais. Ele me penetrou e tá doendo? ele disse. Diz que tá doendo. E eu disse: tá doendo. E ele gemeu. E ele gozou. 


Ele limpou sua mão melada no meu cabelo e disse: obrigado, meu anjo. E me bateu, mas não para matar. Ele não era assassino. Ele tinha mãe, pai, irmã. Talvez uma namorada. Provavelmente uma namorada. Ele me bateu, mas não quebrou nada. Ele não era mau.

Eu não procurei a polícia porque me olhariam e eu sabia de tudo. Voltei pra casa e tomei banho. Joguei as roupas sujas de sangue e sêmen num canto do quarto. Todos dormiam, ninguém me viu. Tudo doía e eu não tentava me mexer. Fique quietinha, meu amor, ele disse. 

Foi tudo como deveria. Eu estava de saia. Eu estava bêbada. Eu saí sozinha à noite. Sou feia, deveria agradecer, dizem uns. Também... dizem outros. Eu não gritei, eu não tentei fugir, eu não tentei bater. Eu não dificultei. Eu fiquei quieta e obedeci. 

Depois eu chorei, depois eu sofri. Depois eu quis morrer. Eu tentei morrer. Então, lembrei da minha mãe e de como ela também morreria e desisti. Eu continuo. Eu estou aqui. Ninguém sabe. As marcas no meu rosto sumiram. Foi tudo como deveria. Eu continuo. A mesma. O mundo continua. O mesmo. Ele continua. O mesmo. Nada mudou. 

Foi tudo muito rápido, menos de cinco minutos talvez. Pareceu mais enquanto eu contava os movimentos do corpo dele. Não dava pra ver muita coisa naquela noite. Ainda não sei como um borrão pode ser tão nítido. Levanto da cama pensando. Vou deitar pensando. Não foi nada de mais. Ocorreu tudo como deveria. 

Nada mudou. Antes eu era triste e eu continuo triste. Antes eu sofria e eu continuo sofrendo. Antes eu estava cansada e eu continuo cansada. Nada mudou. Eu fui estuprada e tudo ocorreu como deveria. Ele ficou satisfeito. Eu fiquei calada. O mundo ficou o mesmo. 


Três comprimidos além da dose não mudarão nada.

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segunda-feira, 12 de julho de 2021

Tempos líquidos - Zygmuny Bauman (Parte 2)



A parte um está aqui.

Bauman passa então a falar sobre os direitos nas nascentes democracias. Ele começa afirmando que foi principalmente na Europa que o medo mais se desenvolveu nos últimos tempos e explica que esse medo e sua consequente insegurança vêm da crença de que a segurança total pode ser alcançada, mas quando isso não acontece – e nunca pode acontecer – deve haver um vilão. Para o autor, o vilão elegido é o humano, derivado da “habilidade e/ou indisposição para tornar esse companheirismo duradouro e seguro, e portanto confiável.” (BAUMAN, 2007, p. 63). Esse medo, ou insegurança, teria surgido por dois motivos que tiveram origem na Europa:

“a “sobrevalorização” dos indivíduos libertados das restrições impostas pela densa rede de vínculos sociais” e “a fragilidade e vulnerabilidade sem precedentes desses indivíduos, privados da proteção que lhes era oferecida trivialmente no passado por aquela densa rede de vínculos sociais”. (BAUMAN, 2007, p. 64)

 

            Então, Bauman entra na questão do Estado moderno e afirma que a ele foi conferida a tarefa de administrar o medo e que, para isso, era necessário criar uma nova rede de proteção a partir do zero. Para ele é a proteção e não a distribuição de riquezas que está no centro do “Estado social”. Nesse sentido, ele ressalta que “a luta dos direitos pessoais foi estimulada pelo desejo dos afortunados” (2007, p. 67), que esperavam manter ou aumentar seu status. Citando Marshall, o autor afirma que o passo seguinte foi a demanda por direitos políticos pois os direitos pessoais já tinham sido obtidos e era necessário defendê-los. Para Bauman, eles são dependentes: “A segurança das pessoas e a proteção de suas propriedades são condições indispensáveis para a capacidade de lutar efetivamente pelo direito à participação política.” (2007, p. 68). Além disso, a junção desses direitos é exercida pelos poderosos, ou os já seguros, O direito do voto só poderia ser exercido pelos que já possuíam recursos econômicos e culturais. Daí vem a problemática do sufrágio universal e da impossibilidade, no começo das democracias, de mulheres, negros e analfabetos votarem. Em alguns lugares, como no Brasil, era preciso ter renda mínima para garantir o direito ao voto. Isso faz com que os excluídos tenham poucas chances de adquirir os recursos necessários para exercer direitos políticos, afinal, são excluídos destes. Bauman ainda afirma que, sem esses direitos, não é possível haver confiança nos direitos pessoais e que, sem direitos sociais, também não é possível haver direitos políticos, o que deixa os pobres e os excluídos à mercê da “caridade” dos governos.

            Bauman continua para afirmar que diversos riscos de fracasso acompanham a liberdade de escolha, mas que, para a maioria das pessoas, ela não é uma possibilidade a menos que o medo da derrota seja tirado de cena por uma política de seguro comunitária. Sem isso, os mais desafortunados ficam sem salvação e perdem a fé nos direitos políticos.

            Retomando a história do Estado moderno, Bauman afirma que houve uma mudança em sua função: ele passou de ter a tarefa de ajustar as instituições às realidades existentes para reformar as realidades sociais. Afirma ainda que, na atualidade, “A irrevogabilidade da exclusão é uma consequência direta, embora imprevista, da decomposição do Estado social.” (BAUMAN, 2007, p. 75). Nesse sentido, ele exemplifica a questão do desemprego. Nos dias de hoje, estar desempregado deixa de ser uma aflição temporária que será resolvida, mas passa a ser o rótulo de alguém que se tornou descartável, destinado ao “lixo humano” sobre o qual já falou antes. Isso acontece pela ineficácia do Estado em prover uma rede de proteção. 

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Tempos líquidos - Zygmunt Bauman (Parte 1)

 



Bauman inicia a obra Tempos líquidos (2007), Bauman (2007, p. 7) dizendo que “passamos da fase “sólida” da modernidade para a “líquida””. Para o autor, isso significa que antes possuíamos estruturas que limitavam as escolhas individuais e instituições que asseguravam a repetição de rotinas, mas que elas não podem mais manter sua forma por muito tempo, pois se dissolvem muito rapidamente.

Ele também fala sobre a perda de poder do Estado moderno para um mundo globalizado. Isso aconteceria porque aquele é local e este é planetário. Diz ainda que as funções dos Estados passam agora para o mercado, que controla a vida dos indivíduos e, notadamente, expõe as pessoas aos seus caprichos, promove a competitividade e diminui a colaboração.

Bauman cunha o termo “globalização negativa” e diz (BAUMAN, 2007, p. 13):

(...) uma globalização seletiva do comércio e do capital, da vigilância e da informação, da violência e das armas, do crime e do terrorismo; todo unânimes em seu desdém pelo princípio da soberania territorial e em sua falta de respeito a qualquer fronteira entre Estados. Uma sociedade “aberta” é uma sociedade exposta aos golpes do “destino”.

           

Ele também enfatiza a função do medo nessa nova sociedade, que se espalharia quase que organicamente e sem freios. Isso aconteceria porque a vida humana se tornou instável: empregos, parceiros, redes de amizades. Para ele, a ideia de progresso, em vez de ser positiva, causa o medo de ser deixado para trás, o que, por sua vez, causa uma angústia existencial. Esse medo não vem à toa. Ele é muito lucrativo, tanto comercial, quanto politicamente. Bauman afirma que a ideia de segurança pessoal se tornou a bandeira da política. O medo vem também do “desmantelamento das defesas construídas e mantidas pelo Estado contra os temores existenciais.” (2007, p. 20). Para ele, vivemos um “cada um por si e Deus por todos”. Bauman ainda explica que o enfoque no medo individual vem associado à precarização do chamado Estado de bem-estar social. Para se aprofundar na questão do medo, ele cita a chamada “guerra ao terror”, que, como exemplifica, em vez de gerar mais segurança, fez aumentar o número de armas leves presentes na sociedade. Tudo isso causa uma falta de solidariedade coletiva e aumenta o individualismo. Bauman afirma (2007, p. 21):

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Quando crescer quero ser Jane Villanueva

 


Jane the Virgin é um pastiche das novelas hispanoamericanas. E, como uma boa novela, é uma comédia que tem dramalhão, triângulo amoroso, um pai engraçadíssimo, um grande mistério (a investigação de Michael) e uma vilã que é impossível não amar.

Jane decide se guardar para o casamento por causa da forte religiosidade de sua avó e também porque não quer ser igual à mãe, que a teve com apenas 16 anos e sofreu muito com isso, como acontece com todas as mães adolescentes.

Uma das coisas mais interessantes da série, pelo menos pra mim, é a sororidade das mulheres Villanueva. Elas podem brigar e se desentender, e isso acontece, mas estão sempre lá uma para as outras. Isso é muito importante quando pensamos no movimento feminista e nas reivindicações que, nós, mulheres, sempre temos. Há até uma referência ao teste de Bechdel! Perfeito! Divino! Maravilhoso! Além disso, há uma empreiteira mulher. Que a gente tenha que comemorar isso em pleno 2021 é uma tristesa, mas tem.

Mas chegando na história, no primeiro capítulo, Jane é acidentalmente inseminada artificialmente, então ela se torna uma grávida e, depois, uma mãe virgem. Seu sonho é ser escritora e, apesar das dificuldade de lidar com a maternidade e a busca por uma carreira, ela segue em frente. Aqui a gente volta na sororidade: sem a ajuda da família, ela não conseguiria.

segunda-feira, 14 de junho de 2021

A strange stirring - Stephanie Coontz

 


The Feminine Mystique and American Women at the Dawn of the 1960s 

 

 

Um programa que gosto muito de assistir é o The Daily Show, que aborda os assuntos mais presentes na mídia e expõe a construção de sua retórica e contradições. Nos últimos minutos de cada episódio, John Stewart entrevista um convidado. Foi assim que eu ouvi falar de A Strange Stirring. Stephanie Coontz era a entrevistada do dia e levantou questões muito interessantes, então acabei comprando seu livro, que fala sobre a situação das mulheres na década de 60 e sobre como o lançamento d’A mística feminina de Betty Friedan em 1963 influenciou o movimento feminista.

 

Sempre que se fala sobre o movimento feminista, A Mística Feminina é mencionada como um dos pilares de sua segunda onda. O livro, considerado um dos mais influentes do século XX, causou grande impacto na vida de muitas mulheres e ante seu sucesso, obteve uma oposição tão ferrenha quanto sua defesa. A opressão da década de 50, assim como a falsa construção da feminilidade como sinônimo de satisfação com casamento, maternidade e afazeres domésticos imposta severamente após as mais liberais décadas anteriores, na quais, devido às grandes guerras, mulheres compunham grande parte da força trabalhadora dos Estados Unidos, é especialmente tocante. Logo no início do livro, há alguns trechos de relatos que demonstram as implicações de valores cada vez mais restritivos sendo impostos: 

 

“Os pensamentos que eu tinha eram terríveis. Eu desejava ter outra vida. Eu acordava e começava a limpar e lavar roupas e me sentia miserável. Ninguém parecia entender. Minhas amigas não se sentiam assim. Eu simplesmente supus que eu seria punida de alguma forma. Isso é o que acontece com mulheres que são egoístas. Minhas amigas diziam: você é tão egoísta.” 

 

Mas o livro não é simplesmente uma exaltação de Betty Friedan e de seus méritos. Stephanie Coontz, na verdade, é bastante crítica e nomeia um de seus capítulos de Desmistificando A Mística Feminina, no qual ela lembra que apesar de todo o impacto que teve, o livro foi o resultado da insatisfação crescente e de muitos movimentos e manifestações sociais que possibilitaram sua escrita e no qual ela ressalta que, apesar de toda a veneração que o livro causa até hoje, se seu texto for analisado, ele é bem moderado, pois um dos principais objetivos de sua autora era ajudar mulheres insatisfeitas melhorarem sua vida em família. 

 

Em suma, A Strange Stirring analisa de forma detalhada o momento histórico do lançamento d'A Mística Feminina, seu impacto, seus méritos e suas falhas, além de propor questões sobre a situação atual principalmente no que tange à relação entre carreira, educação e família para a mulher moderna. O livro é ótimo para quem gostaria de conhecer mais sobre a mulher nas décadas de 50 e 60 e o movimento feminista de forma geral. Infelizmente, acredito que esse livro não tenha tradução para o português, mas para quem puder, é uma leitura interessante e enriquecedora.

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segunda-feira, 7 de junho de 2021

Antes de tudo Um teto só meu



Em 1928, Virginia Woolf, já naquela época uma renomada escritora, foi convidada pelas faculdades de Newnham e Girton, faculdades para mulheres integrantes da Universidade de Cambridge, para uma série de palestras entituladas: Women and Fiction (Mulheres e Ficção). Ela resolveu falar sobre feminismo.

A primeira parte da palestra trata da história de uma mulher que, como ela, é convidada para falar sobre Mulheres e Ficção. Virgínia conta o dia e o fluxo de pensamento dessa mulher que pondera sobre o real significado do tema em questão, o qual é vasto e pode significar muitas coisas. Interessante que durante esse dia, os pensamentos da personagem são muitas vezes interrompidos, pois ela está adentrando território masculino, um exemplo é quando tenta entrar em uma biblioteca.

A escritora continua falando sobre muitas coisas relevantes em relação a condição da mulher e sua falta de liberdade e autonomia. Também faz um panorama da história da literatura feminina e demonstra como as mulheres vêm sendo prejudicadas pelo patriarcalismo.

Uma das partes mais interessantes de A room of one's own é quando a autora discorre sobre a pobreza da representação da mulher na literatura. Elas, em sua esmagadora maioria, são mostradas de acordo com suas relações com o sexo masculino, elas são amantes, mães e filhas, mas raridade é encontrar duas mulheres que tem laços de amizades explorados em livros.

Na década de 90, Alison Bechdel, em seu quadrinho Dykes to watch out for, na tira com título The Rule, traz um tópico muito interessante quando uma das personagens explica suas regras para assistir um filme:

1. É necessário haver pelo menos duas mulheres

2. Elas tem que conversar

3. Sobre algo que não seja homens.

A tirinha termina com a personagem dizendo que faz tempo que não assiste nenhum filme.

Em 2021, em sites e fóruns sobre cinema e/ou feminismo, percebo que as pessoas ainda têm uma dificuldade enorme para encontrar filmes, livros, séries e quadrinhos que se encaixem nessas regras. Eles existem, é claro, e em grande quantidade, mas se comparado com aqueles que não se encaixam na regra, seu número ainda é pequeno, e se for analisada a mídia dominante, como blockbusters, novelas, etc, esse número fica ainda menor. O mesmo acontece com a literatura.

Foi por isso que eu, escritora, escolhi esse nome para meu blog. Sou uma mulher vivendo num mundo hostil. Estou cansada de encontrar obras de qualidade que são pouco revisadas, que são pouco estudadas pela academia e que são taxadas de literatura menor simplesmente porque quem as escreveu tem uma vagina. Já passou da hora de mudar essa situação. Sozinha, não posso muito. Mas tudo o que puder, tentarei fazer aqui. Para conhecer meus livros, acesse www.mahanacassiavillani.com.br

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Cortar ou não cortar o cabelo?

 


    Quando tive a pior crise bipolar da minha vida, sobre a qual falei no último post, meu cabelo começou a cair. Quando eu melhorei, ele continuou caindo. Se formavam grandes nós que eu não conseguia desfazer e precisava arrancar. O resultado: fiapos aqui e ali e vários cotocos bem pequenininhos.

    Agora estou fazendo um tratamento e ele parou de cair, mas, toda vez que olhava os fiapos, me lembrava do momento mais difícil da minha vida. E isso me fazia muito mal.

    Apesar de achar que não fico bem de cabelo curto, criei coragem e pedi pra minha cunhada cortar meu cabelo (não tenho coragem de arriscar cabeleireiro com essa pandemia).

    Junto com os poucos fios, foram as lembranças daquele momento difícil. 

    Tirando do meu corpo a memória da doença. 



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quinta-feira, 27 de maio de 2021

A pior crise de bipolaridade que já tive

     


    Tudo começou devagar. Era maio de 2020, mas não teve a ver com a pandemia. Minha avó, que agora já partiu, tinha Parkinson, e nos últimos anos de vida, entrava e saía de hospitais frequentemente. Ela estava internada, e eu tinha medo de ficar sozinha em casa enquanto minha mãe ficava com ela. Primeiro sinal. 

    Comecei a ficar na casa da minha irmã enquanto minha mãe estava no hospital. Mas eu não conseguia ficar sentada. Ficava deitada olhando para o computador esperando aparecer trabalho. 

    Minha avó voltou para casa, mas eu continuei ficando deitada, me sentindo cada vez pior. 

    Então chegou o dia. Estava numa reunião de trabalho ouvindo as pessoas e nada daquilo fazia sentido para mim. Eu senti uma vontade enorme de cortar os pulsos. Tudo na minha mente me dizia que era isso que precisava fazer. Fui até a cozinha e peguei uma faca grande e afiada. Logo que comecei a enfiá-la na carne, minha mãe chegou bem quando eu estava começando, então ficou só um arranhão. Ela escondeu todas as facas.

    Depois, eu comecei a ter uma ideia fixa. Queria furar os olhos. Ela teve que esconder todas as coisas pontiagudas: pinça, cortador de unha, tesoura e até uns palitos aromáticos que eu quebrei e tentei enfiar nos olhos.

    Falava com meu psiquiatra toda semana e toda semana ele mudava o remédio. Acho que nada profissional. Até que chegou o dia em que recebi uma mensagem da secretária dele dizendo que ele havia parado de atender por tempo indeterminado. Era mentira. Conhecia uma menina que passava com ele e ela continuou indo nas consultas normalmente.

    Foi aí que caí de vez. Passava com ele há uns 6 anos. E quem tem esse tipo de problema sabe que a relação com o psiquiatra tem que ser de total confiança.

    Eu ficava deitada no sofá de pijama o dia inteiro, com uma almofada apertada contra o peito para tentar segurar a angústia.

    A empresa em que eu trabalhava e, principalmente, meu chefe, foram muito humanos. Aceitaram vários atestados sem me colocar na caixa.

    Uma amiga recomendou um psiquiatra para mim e foram uns sete meses até acertar o remédio. Sete meses chorando, sem conseguir tomar banho, com uma angústia sem fim. Eu queria morrer, mas não tinha forças nem para tentar me matar.

    Mas, enfim, melhorei. Não quero nunca mais passar por isso, mas sei que é uma possibilidade.

    Acredito, porque preciso acreditar, que a bipolaridade me deu um presente: o dom da escrita.

    Bipolares com frequência têm tendências artísticas. 

    Mas, nunca, nunca romantize essa situação. Disturbios mentais são um assunto sério.


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E Marília?


 

Era como se Marília sempre tivesse sido mãe. Sua carreira promissora na juventude fora apagada pelos muitos anos em que cuidou dos filhos. Era a mãe modelo. Sempre respeitando, sempre tentando ouvir, deixando que as crianças, e depois adultas, tivessem sempre sua individualidade.

Quando seu pai morreu, se tornou mãe da própria mãe, que tinha sido criada à moda antiga e, como tal, não sabia fazer nada da vida prática sozinha. Marília tinha que levá-la ao mercado, ao médico, à fisioterapia, à natação. Também precisava ter os cuidados emocionais, então a visitava todos os dias para que não se sentisse sozinha. Na casa pequena de Marília, não havia espaço físico para sua mãe.

Era uma espécie de tortura porque a mãe, diferente de Marília, nunca tinha sido uma mãe de verdade e a deixara com feridas profundas e uma sensação de abandono da qual não conseguia se desvencilhar e que, sem querer, passou para as filhas.

A situação piorou quando veio o diagnóstico de Parkinson. Foi preciso encontrar lugar para a mãe de Marília em sua casa e isso aconteceu porque, naquele ano, as duas filhas se mudaram. Uma para casar, a outra para morar sozinha.

Marília deparava-se com uma nova filha. Um corpo de mulher exigindo cuidados de criança. Fraldas, pomadas, papinhas. Tudo durou mais ou menos cinco anos e, nesse período, a filha de Marília que havia saído para morar sozinha e que se chamava Clarice, voltou. Dormia na sala. Era depressiva e bipolar, então Marília precisava cuidar dela também. Duas filhas grandes como se fossem pequenas não é tarefa fácil para uma mulher, mas Marília era a mulher. E fazia tudo não com resignação, mas com uma vontade de ferro.

Depois que a mãe partiu e a Clarice melhorou (encontrou um bom psiquiatra e acertou os remédios), ela decidiu fazer inseminação artificial e ter seu próprio filho ou filha. Marília apoiou, sua outra filha tinha uma mulher, uma companhia, mas Clarice era sozinha. Talvez por seus problemas nunca conseguiu fixar-se em um relacionamento duradouro.

Fizeram o procedimento com todos os medos, dores e alegrias que ele traz e Clarice finalmente engravidou. Uma menina a que chamou Cecília.

Clarice tomava seus remédios, estava bem e cuidava da filha com o maior amor que conseguia sentir. Marília também fazia sua parte, era mais que avó, era segunda mãe.

Conforme Cecília crescia, Clarice começou a ter cada vez mais dificuldades em engolir. Principalmente os remédios, engasgava e vomitava com frequência. Marília se preocupava e exigiu que ela fizesse os exames de Parkinson. Eles não são tão precisos assim, mas era melhor ter uma ideia.

O médico foi taxativo. Sim, havia a presença do Parkinson, e os sintomas começariam a aparecer. Marília e Clarice choraram muito. Clarice tinha presenciado todo o sofrimento da mãe e não queria que ela passasse por tudo aquilo de novo. Cecília tinha cinco anos.

Conversaram muito e tomaram uma decisão. Mãe, não chore por mim, te deixo de presente meu bem mais precioso. Cuide dela e tente fazer ela não se esquecer de mim. Eu te amo com todo o meu coração e quero que você viva feliz.

Clarice pegou todos os comprimidos de Rivotril que tinha em casa e os tomou de uma vez. Deitou-se no colo da mãe com a filha a seu lado. Quando percebeu que Clarice havia parado de respirar, a mãe acariciou seus cabelos, pegou o celular e chamou a ambulância.


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O caminho da serpente

 É com muita alegria que anuncio a publicação do meu novo livro, O caminho da serpente. 

Escrever é um derramamente, um chamado. E poder compartilhar esse chamado com os outros é um presente sem igual. Vou colocar aqui a capa e um conto do livro. Quem quiser adquirir é só entrar no site www.mahanacassiavillani.com.br ou me procurar no Whatsapp (11) 99111-7614 . 




Em "O caminho da serpente", Mahana Cassiavillani dá provas que sua voz tem o peso e as medidas necessárias para fincá-la entre as grandes escritoras da literatura contemporânea. No segundo livro de contos, gênero que pratica com maestria, a autora se contorce, mais uma vez, entre temas difíceis; não de modo panfletário, mas plenamente absorvidos pelos corpo textual: a criança gorda, a menina lésbica, o filhinho da mamãe, situações de assédio, masturbação, depressão, traição, doença, bullying, invisibilidade, perdas, reaparecem com a mesma ironia, mas agora, deitados com uma enganosa indiferença sobre o papel.

Isso porque se o caminho é o mesmo - as violências naturalizadas no cotidiano - a serpente trocou de pele: "Cobra real. Cobra pássaro que voa livre de amarras. Meus braços que não são se abrem em prece" e deixa seu rastro numa espécie de travessia entre os contos. Assim, vemos a ausência tão presente pai - da desaparição pelo abandono à morte - perpassar a grande maioria dos contos, deixando marcas profundas nas personagens. A narradora também vai trocando de pele, sendo ora uma, ora outra, irmanando-se de suas personagens para deflagrar situações terríveis a partir da mesma lente acostumada desses indivíduos vidrados em programas sensacionalistas que os olham sem ver, ou melhor, sem sentir. Tudo isso num provocativo serpentear que avança e retrocede com presteza: "Quando adulta, entendeu que, quando criança, fora muito pobre".

Essa horizontalidade na escritura, no entanto, é surpreendida por movimentos fatais: como a cobra real, que se caracteriza por botes certeiros antecedidos ou seguidos de encolhimentos, Mahana finaliza com imagens verticais que nos abismam ao final de cada conto. É uma picada cerebral. A essa autonomia plenamente constituída somam-se ainda as ilustrações de Jacqueline Harsche, que acrescentam provisoriedade e subtaneidade à natureza já serpenteante dos textos.

Geruza Zelnys